O breve diálogo platônico Críton inicia-se com Sócrates acordando na prisão, onde aguarda a execução de sua sentença, e se deparando com o amigo e discípulo que dá nome à obra. Aflito, o leal Críton confessa logo suas intenções: elaborou um plano de fuga, ao qual Sócrates deve aderir antes que seja tarde. O que dirá a multidão, pergunta, se os amigos, mesmo tendo dinheiro para subornar o guarda e libertá-lo, nada fizerem? Sócrates responde que não devemos nos preocupar com a opinião da massa, ignorante dessas questões, mas com a verdade. Críton, porém, insiste: recusando-se a fugir, ele praticará uma má ação, pois deixará os filhos órfãos e os amigos desamparados.
Diante disso, Sócrates pondera que é necessário verificar a retidão da proposta, examinando quais razões podem ser aduzidas no caso para, só então, saber qual é de fato a ação justa, entendendo por justiça certa harmonia não do corpo, mas da alma, já que o mais importante para o homem não é o mero viver, mas “o bem viver” (τὸ εὖ ζῆν).
Um ponto fundamental, já fixado em outras investigações, é que, ao contrário do que a multidão pensa, não se deve retribuir o mal com o mal. Sendo assim, a desobediência às leis de Atenas não seria uma nova injustiça? Não consistiria em pagar um mal com outro? Para sabê-lo, nada melhor do que ouvir as próprias leis. Sócrates imagina, na sequência, o que estas diriam se pudessem ganhar vida; é a passagem final do diálogo, conhecida como “prosopopeia das leis”.
As leis argumentam que, caso sejam violadas, a cidade estará em risco, pois como esta poderia subsistir sem leis? Descumpri-las, dizem, seria uma ruptura do “acordo que há entre tu e nós” (ὡμολόγητο ἡμῖν τε καὶ σοί). Após ter passado toda a sua vida em Atenas, beneficiando-se de suas leis, como as referentes ao casamento, à alimentação e à educação, sem nunca ter desejado partir, como ele pode agora escolher escapar, rompendo os “pactos e acordos” (ὁμολογίας τε καὶ συνθήκας) que ligam o cidadão à sua cidade?
Por fim, o ponto fundamental: elas alegam que, se escolhesse fugir de sua condenação, Sócrates “agiria como o escravo mais vil” (τε ἅπερ ἂν δοῦλος ὁ φαυλότατος πράξειεν). Ora, o escravo mais vil, no mundo antigo, era aquele que desobedecia ao seu mestre, procurando fugir de suas ordens e de seu jugo. O que as leis sugerem, portanto, é que o cidadão lhes deve a mesma obediência que um escravo deve ao seu senhor.
Obviamente, não se trata aqui de obediência cega, mas da percepção, fortemente difundida no pensamento clássico, de que, extirpada a lei, resta apenas o arbitrário, que rapidamente se transmuta em violência. A escravidão às leis, ou, em termos modernos, o respeito à legalidade, é valor basilar, sem o qual não pode existir liberdade. Se a liberdade é igual, ela precisa de uma medida, de um cânon que a fixe com paridade para todos; sem esta regula, o acordo se esvai e a política degenera em opressão.
Rebelar-se contra as leis, nesse sentido, equivale a aceitar que, na ausência do parâmetro comum, qualquer homem, por pior que seja, pode ocupar o seu lugar, impondo os próprios padrões contra a liberdade de todos. Não ter a lei como mestre, assim, não significa estar livre de amarras, mas consentir com a possibilidade de ser subjugado pelos piores mestres. Logo, não podemos passar ao largo da legalidade, mesmo que com “boas intenções”. Lição importantíssima para a nossa época, que não raro vê as leis como obstáculos à realização da “justiça” tal como a massa ignara a compreende (os exemplos são muitos: o repúdio às garantias processuais, as tentativas de linchamento em portas de delegacia, as infames comemorações de “cancelamentos de CPF” nas redes sociais etc.). Daremos ouvido à multidão ou seguiremos o exemplo de Sócrates?
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