No ocidente de todas as racionalidades (inclusive as irracionais, voltadas para a destruição como premissa médica, missão civilizadora e imperiosa necessidade), os sonhos sempre foram ligados ao futuro. Ao que pode ou, nos casos dos adivinhos mais radicais, ao que vai ocorrer.
Não é, pois, por acaso, que quando Freud contestou essa “verdade verdadeira”, ao mostrar que os sonhos falavam mais do passado, e do que estava dentro de cada um de nós, do que do mundo exterior e dos eventos vindouros, ele causou tanta celeuma. Antes dele, o maior intérprete de sonhos do nosso universo judaico-cristão-capitalista-marxista-leninista-fordista-nazista-populista-chapliniano-pós-contemporâneo… (pense e acrescente o que você quiser, caro leitor…) era o bíblico José do Egito, revivido em quatro volumes de 400 páginas cada um por Thomas Mann. Se o genial Lévi-Strauss realizou a façanha de interpretar mitologicamente, nas suas mitologias (quatro volumes de 400 página cada – eis o número quatro novamente), mais de 800 mitos dos ameríndios, circunscrevendo-os em fórmulas canônicas e revelando aspectos surpreendentes do chamado “pensamento selvagem”; Thomas Mann realizou o inverso: ele transformou um mito sagrado numa meditação independente de prova teológica ou política – essas legitimações ancoradas na autoridade suprema, indiscutível e anti-humana, como gostam os idiotas – cerca de 25 versículos do Gênesis. Fez de versículos para serem lidos num templo um romance que fala direta e pessoalmente à alma e ao coração de um leitor, não de um crente. Escreveu um sonho feito não de mitos pensando mitos, mas de um mito repensado como uma narrativa humana, na qual a afeição ou o amor pelos outros é o fio. Na literatura não se prova nada – exceto o amor do sonhador pelo sonhador que lê. Eis sonhar pelo sonhar. Esse ato exclusivamente humano realizado por quem joga fora toda uma vida pintando, compondo, lendo, ensinando e pelo tal “amor à arte”. Esse amor que não precisa de registro, reconhecimento ou memória. Coisas de quem corta a orelha e confunde meios e fins, de quem destroca sonhos e realidade…
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Quem joga no bicho, essa brasileiríssima instituição encoberta pela nossa notória mendacidade oficial, sabe que um dos melhores palpites para “acertar” num bicho e ganhar uma bolada é um evento impossível de ser programado. Um sonho nítido, a morte súbita de um ente querido, um acidente de automóvel envolvendo uma celebridade, a data de uma cobrança esquecida. Tudo o que é desenhado pela mão invisível do imprevisto, do acaso ou da inocência, é um bom palpite. É um aviso esperançoso. Pode transformar uma pessoa comum em um barão acima das leis e da necessidade de trabalhar.
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O melhor palpite é feito do casamento do imprevisto (quase sempre doloroso) com a esperança. O que, na maioria dos casos, constitui o infortúnio e promove o ódio, a frustração, a culpa e o ressentimento – esses demônios recorrentes da vida. O jogo atrai porque, entre outras coisas, ele possibilita arriscar na ausência do acaso. Se tudo segue uma ordem, se tudo foi planificado, se o dia de ontem foi tranquilo, por que não se pode acertar num evento futuro? O sonho previsível, porém, pode virar o infortúnio que leva a uma dolorosa questão: por que ocorreu comigo? Essa é a pergunta que consome as cosmologias porque ela denuncia (ou anuncia) catástrofes e, simultaneamente, abre a pessoa ou o sistema aos êxitos de emergência. O jogo do bicho me ensinou, por intermédio de minha avó Emerentina que teve dois maridos, o primeiro morto por assassinato, perdeu mais filhos do que comanda qualquer carma ou holocausto, mas não abandonou o gosto de viver e jogar – há diferença? -, só no despotismo é que não há fortuna sem infortúnio; ou domingo sem segunda-feira.
No livro “A Ponte” de São Luis Rey, Thornton Wilder trabalha esse problema por meio do irmão Junípero que, como o antropólogo inglês Edward Burnett Tylor, criador do conceito de cultura e inventor da antropologia da religião, entendia que “se há leis em algum lugar, deve existir lei em toda parte”. A determinação dos destinos era o foco do franciscano que fazia uma tabela dos pecados e virtudes dos seus paroquianos. Alfonso tinha a nota 4 em bondade e em piedade, mas 10 em trabalho pelo bem comum; Vera, porém, tinha 10 em trabalho pelo bem comum e piedade, mas 0 em bondade! Não havia coerência: as ações humanas mais precisas têm consequências imprecisas.
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Há lógica na alternância do dia e da noite – exceto nos eclipses. O problema é que não há ser humano que não precise de uma lua azul ou de um sol camuflado. Ou de chuva com sol. O problema não é o infortúnio que marca a maioria das vidas. É como eles são tratados. Por isso o sonho tem que ser sonhado – interpretado – como José fez com o deus rei faraó. Anos de fartura se seguem a anos de penúria. Os cavalinhos continuam correndo e os cavalões comendo, como na poesia de Bandeira. E nós vamos continuar assistindo a essa medíocre ladroagem geral sem dizer nada? Sem sonhar?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 16/05/2012
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