Crises econômicas costumam prejudicar mais as pequenas empresas. No entanto, um grupo de start-ups está conseguindo crescer em plena recessão justamente por fazer o que esses negócios de base tecnológica sabem fazer melhor: solucionar problemas. No caso, as demandas criadas pela pandemia.
De acordo com estudo da ACE, uma aceleradora de negócios de tecnologia de São Paulo, cerca de 15% das start-ups brasileiras aumentaram as vendas por causa da pandemia.
Nessas ilhas de prosperidade, há negócios que triplicaram de tamanho nos últimos meses ou quem esteja contratando num cenário de desemprego alto. Apesar das boas notícias, um alerta: pode faltar crédito para o crescimento desses negócios.
O fechamento de lojas provocou uma corrida ao comércio eletrônico. O aplicativo de delivery Diálogo Logística aproveitou a oportunidade.
Dedicada à entrega de itens leves a clientes de varejistas como C&A, Renner e Magazine Luiza, a empresa de Porto Alegre (RS) despachou 600 mil pacotes nos últimos três meses, duas vezes o normal para o período.
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As receitas da start-up criada em 2015 também devem dobrar este ano em relação a 2019, alcançando R$ 100 milhões. Com mais serviço, a equipe de 200 funcionários vai ganhar reforço.
— Temos 50 vagas abertas e devemos contratar mais nos próximos meses — diz o fundador, Ricardo Hoerde.
A pandemia também catapultou os negócios da LivUp, uma start-up paulistana de marmitas prontas.
Com a legião de trabalhadores sem habilidades na cozinha e que teve de dar adeus ao restaurante na quarentena, a LivUp praticamente triplicou o volume de pedidos este ano em comparação com 2019, calcula a empresa.
Criada em 2016 como um aplicativo para encomenda de comida com ingredientes orgânicos, a LivUp já crescia antes da crise. No fim do ano passado, recebeu investimento de R$ 90 milhões para uma expansão.
Com a pandemia, foi ágil no lançamento de novos produtos, como cestas de vegetais orgânicos e uma seleção de saladas prontas.
— Com a pandemia, antecipamos alguns planos — diz Victor Santos, cofundador.
Na cadeia de delivery, também se destaca quem facilita pagamentos digitais. A catarinense Transfeera, que tem como clientes outras start-ups, como os aplicativos iFood e Rappi, trabalha para processar mais rapidamente compras e evitar fraudes na relação com clientes e entregadores de comida.
O volume de operações processadas por mês saltou de 40 mil para perto de 300 mil em abril. Com pouco mais de dois anos de vida, a Transfeera deve faturar R$ 5 milhões em 2020.
— É três vezes o patamar de 2019 — comemora o fundador Guilherme Verdasca.
Entregadores insatisfeitos
Protestos de entregadores em várias cidades na última quarta-feira evidenciaram que essa ponta da cadeia dos aplicativos de delivery não vive a mesma euforia.
Eles reclamam de baixa remuneração por viagem e sistemas de pontuação nas plataformas que, na prática, os obrigam a longas jornadas por muito pouco.
Robert Janssen, diretor executivo da consultoria OBr Global, atribui esse desequilíbrio à meta principal de qualquer start-up: acelerar o crescimento. Nessa busca, o fator humano pode não ter sido visto apropriadamente pelas empresas, diz:
— O algoritmo é programado para alcançar a escalabilidade a qualquer custo, não tem emoção. Mas quem produz o algoritmo é humano. E cada vez mais as empresas sabem que precisam agregar valores a seus negócios. Não podem ver só o lado financeiro, mas também o propósito. Acredito que essas manifestações levarão a uma mudança.
A pandemia também acelerou a empresa de biotecnologia catarinense BiomeHub, que patenteou um exame rápido da Covid-19.
O produto é vendido para empresas com muitos funcionários trabalhando lado a lado em cadeias produtivas que não pararam durante a quarentena, como as indústrias de alimentos. A start-up deve arrecadar R$ 16 milhões até agosto.
— Agora o foco é fazer a nossa tecnologia chegar às empresas de pequeno porte — diz Luiz Felipe Valter de Oliveira, fundador da BiomeHub.
Na visão de quem acompanha o mercado de start-ups, o descompasso entre a macroeconomia do Brasil e a realidade dessas empresas em rápida expansão já era esperado.
Para Julie Ruvolo, diretora da Lavca, associação de fundos da América Latina especializados em negócios de tecnologia, os períodos de crise são ideais para start-ups.
Ela lembra que empresas de tecnologia americanas com presença global, como os aplicativos de compartilhamento Uber e AirBnb, ganharam força em meio à crise financeira global de 2008.
Entre 2014 e 2016, durante o tombo da economia brasileira, expandiram rapidamente negócios de tecnologia como o aplicativo de transporte 99 e a companhia de maquininhas de pagamentos Stone.
— Crises abrem espaço a empresas inovadoras, que conseguem se adaptar mais rápido aos choques — diz Julie, para quem um sinal da força do ecossistema de start-ups brasileiro está na continuidade dos investimentos de fundos estrangeiros em negócios de tecnologia por aqui.
Negócios em alta, crédito em baixa
Em maio, os aportes em start-ups somaram US$ 36 milhões, 80% mais que no mesmo período do ano passado, segundo levantamento do Distrito, centro de pesquisas sobre o setor, em São Paulo.
— Com as reuniões on-line, o número de negociações aumentou, mas o funil apertou. O primeiro movimento dos investidores com um bom portfólio de start-ups foi parar para cuidar da cozinha, do impacto nas empresas investidas — diz Janssen, da OBr Global. — Os investidores que ainda estavam montando a carteira antes da crise retomaram as conversas, mas estão muito mais seletivos. Querem ver com detalhes os riscos da empresa antes de entrar.
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Olhando para frente, o que pode complicar a expansão acelerada das start-ups brasileiras é justamente o dinheiro que agora está em sobra nesse setor. É o que alerta Renata Mendes, diretora da ONG Endeavor, dedicada ao fomento do empreendedorismo.
Como estão acostumadas a crescer de uma hora para outra, e a perder clientes também na mesma velocidade, esse tipo de negócio costuma ser mais dependente de linhas de crédito imediato do que as grandes empresas.
A solução passa por incentivos governamentais. Segundo a diretora da Endeavor, a Medida Provisória (MP) 975, edita em junho para direcionar R$ 20 bilhões em crédito a pequenas e médias empresas, precisa ser melhorada.
O texto prevê garantias como imóveis e outros bens materiais para reduzir o risco dos empréstimos, o que empresas de base tecnológica não têm.
— As start-ups, por essência, têm poucos bens materiais. O sucesso delas depende de ativos imateriais, como a boa formação da mão de obra. Por isso, a lei como está hoje não vai expandir o crédito às start-ups — diz Renata.
Janssen, da OBr Global, diz já ter participado de uma série de reuniões envolvendo bancos, representantes do governo e pequenas empresas, mas os empréstimos travam no nível operacional, na mesa dos gerentes, que atribuem risco alto a empresas pequenas com poucos ativos.
— O sistema bancário brasileiro precisa evoluir muito ainda para termos um sistema de financiamentos mais robusto. Apesar dos anúncios do governo, o crédito está fechado na ponta. Fica um jogo de empurra, do governo para os bancos e vice-versa. É muita faísca e pouca rotação — define o consultor.
Fonte: “O Globo”