No Brasil existe o unânime princípio do direito ao “duplo grau de jurisdição”. Ou seja, o princípio que garante às partes de um litígio judicial que o julgamento do juiz “singular”, ou seja, individual, dado no primeiro grau da jurisdição “ordinária” – a primeira instância, pode ser revisto através de um recurso “ordinário” por um juizado superior àquele juiz, e coletivo – ou seja, uma Câmara de um tribunal. E então, neste segundo grau de jurisdição, que é a segunda instância ou tribunal – no percurso processual regular e após julgado o recurso “ordinário” –, termina o processo legal. Terá então sido feita a entrega da prestação jurisdicional devida às partes em litígio. Fim da ação.
Esta é a garantia legal, constitucional, doutrinária e universal no ocidente. É assim que funciona o Poder Judiciário. Aqui termina o julgamento de uma ação ordinária, cível ou criminal, pois já foi atendido o duplo grau de jurisdição através de um devido processo legal. Não existe triplo grau de jurisdição nem 3ª Instância.
Muito além deste devido processo legal ordinário de fazer julgamentos, o que há é que a Constituição Federal previu ainda a existência de dois tribunais federais para questões bem específicas: 1) o STF – Supremo Tribunal Federal para garantir que a Constituição seja cumprida em todas as demandas judiciais e 2) o STJ – Superior Tribunal de Justiça para garantir que as leis abaixo da Constituição sejam respeitadas em todas as demandas judiciais, bem como garantir que as jurisprudências não sejam conflitantes sobre um mesmo assunto.
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Estes dois tribunais não revisam o mérito de julgamentos feitos em tribunais estaduais ou federais. O STF e o STJ não reveem provas processuais. Esta é uma função esgotada lá no duplo grau de jurisdição. São tribunais tão extraordinários e especiais, ou seja, de acesso limitadíssimo e raro, que os recursos dirigidos a eles se chamam Recurso Extraordinário (STF) e Recurso Especial (STJ).
Ocorre que lá na segunda instância, os advogados das partes que perderam as causas costumam tentar encontrar alguma coisa nos processos que possa ser considerada a hipótese de ter sido contrariado algum artigo da Constituição Federal; ou uma hipótese que possa ter contrariado alguma lei; ou ainda tentar mostrar que a decisão pode estar conflitando com outras decisões sobre fato semelhante. Tudo isso para tentar fazer o que é extraordinário e especial (os recursos) ser ordinário.
Sem perder tempo com números, basta dizer que é ínfimo, quase insignificante o número de recursos extraordinários e especiais que alcançam algum êxito. A imensa maioria destes recursos é devolvida sem sequer ser julgado o mérito deles.
Fora desta imensa maioria das ações, estes tribunais têm ainda algumas outras atribuições, tais como julgar alguns casos em que os réus tenham o famoso foro privilegiado ou outras questões mais raras ou importantes, de repercussão geral.
Entretanto, na prática, o que temos assistido é o STF decidir que todos os processos em curso no país precisam ser revistos ordinariamente por ele.
Foi o caso da decisão que soltou da prisão o ex-presidente da república porque ele, STF, ainda não revisou a decisão do Tribunal Federal ordinário que o condenou em duas instâncias ordinárias e, portanto, devidamente cumprido o duplo grau de jurisdição.
A mensagem dada pelo STF é de que ele, STF, avocou a condição de ser também um tribunal ordinário. O STF mandou soltar o preso porque o preso ainda vai fazer um recurso extraordinário dirigido ao próprio STF, recurso este que vai apontar que a decisão no duplo grau de jurisdição foi inconstitucional. Como isto vai demorar, determinou a soltura do preso. Avocou-se na condição de 3ª. Instância ordinária – inexistente.
Se todas as decisões judiciais, cíveis ou criminais, precisam chegar ao STF para serem tomadas como válidas, como decidiu o STF, então ele é também mais um tribunal ordinário. Esta decisão do STF é não só inédita no mundo inteiro, como inconstitucional e indicativa do modo político com que o STF decide.
O STF confirma ser ainda menor do que um tribunal ordinário quando abre um inquérito interno para investigações gerais, inespecíficas, sob o argumento de que a internet também é um ambiente interno do STF e, suprimindo as funções constitucionais da polícia e do promotor de justiça, determina a prisão de pessoas e faz busca e apreensão de bens, sem permitir que tais pessoas sequer saibam a razão disso tudo ou tenham acesso ao processo.
O STF confirma estar sendo ainda pior. Tem sido um tribunal de exceção, ao agirem, seus juízes, como policiais, como promotores de justiça e como políticos militantes. Condenam, sem processo e oralmente, em reuniões públicas de redes sociais, o presidente da república, o ministro da saúde e os comandantes das forças armadas pelo cometimento do crime de genocídio.
O juiz, para a sociedade, é juiz 24 horas por dia. Na sua casa, em seu gabinete, nas ruas ou na internet. O que ele diz é uma decisão de um juiz. Quando fala, diz o que fará no processo.
O STF e os seus juízes – que só no Brasil são denominados “ministros” – estão desinvestidos, descaracterizados, ao assumirem o protagonismo da militância política. Ao agir e falar como fazem, opinando em tudo sobre os demais poderes, perderam a condição de juízes e de tribunal constitucional.
Nunca um juiz do STF fez política como fazem estes juízes atuais – dos quais apenas dois são originários da magistratura (trabalhista). Basta comparar o protagonismo político deste STF e seus membros com o discreto STJ e seus membros. Basta comparar este STF com o STF anterior às nomeações dos atuais membros.
Agora mesmo, determinaram à rede social Twitter a “retenção” de dezenas de contas pessoais que os criticaram. Estão suspensas as contas. Estamos chegando nos níveis das ditaduras onde, antes das redes sociais, utilizavam os “dedos duros” para ouvir quem, no bairro, estava falando mal do ditador – para que este prendesse os “maledicentes”. Esta prática voltou com tudo na pandemia e no ambiente da internet – que, para o STF, é instância de sua competência policial.
Não por menos que um grupamento espontâneo de advogados está levando “a maior ação do mundo” sobre as questões aqui expostas a um organismo internacional, literalmente pedindo socorro. É que a OAB brasileira não se interessa por isso e endossa as palavras e ações dos juízes do STF. Além disso, a OAB decidiu consultar um youtuber pornográfico sobre política, STF e prerrogativas profissionais.
O STF caça almas pelas ruas e na internet como um zumbi paranoico. Ninrode caçava almas em Babel – que significa confusão, nos tempos de Ereque – que significa lentamente, ao modo de Acade – que significa sutilmente, e Calné, até a fortaleza de anu, o deus das trevas na terra de Sinar – que é a própria Babilônia. (Gen 10:10)
Os atuais caçam com pressa e sem sutileza. Instalam confusão na nossa Babilônia, ainda que ao preço de desmoralizar a Constituição e o estado de direito, desbotar suas togas e comprometer sua liberdade de andar nas ruas.