Por Bruno Meyerhof Salama e Francisco Satiro*
Uma questão jurídica recorrente nas indústrias reguladas diz respeito à sucessão, ou não, da pena de advertência após incorporação. O caso típico é aquele em que uma empresa recebe a advertência do regulador por atos praticados pela empresa sucedida ainda antes da incorporação. Como a personalidade jurídica da empresa sucedida foi extinta, a pergunta que se põe ao aplicador é se a superveniente incorporação extingue ou não a punibilidade.
É comum encontrarmos decisões no sentido de que a incorporadora responde genericamente por todas irregularidades praticadas pela incorporada. Como na maioria dos casos não há regra expressa sobre o regime jurídico aplicável às penalidades após sucessão, busca-se o fundamento jurídico a partir de analogia com direito penal. Assim, alega-se que a sanção administrativa teria por fim reforçar a obrigatoriedade da regulação e desestimular a prática de atos ilícitos, devendo, portanto, ser aplicada sempre. Além disso, alega-se que o princípio constitucional previsto no art. 5º, XLV (de acordo com o qual a pena não pode passar da pessoa do infrator) teria aplicação apenas para pessoas físicas – logo, não poderia ser invocado no caso de sucessão de pessoa jurídica. Isso não é tudo. Argumenta-se também que a sucessão por quaisquer penalidades seria uma regra geral que decorreria da dinâmica própria do direito societário. Afinal, a sucessora responde por direitos e obrigações da sucedida, e, assim, segue o raciocínio, também deveria operar-se com as penalidades.
Nessa linha, a sucessão por quaisquer penalidades somente seria excepcionável em situações extraordinárias. A principal delas surgiria nas incorporações realizadas por conta de pressão ou incentivo de autoridades reguladoras (isso é muito comum especialmente na esfera financeira, quando se busca evitar a quebra de entidades tidas como “sistemicamente importantes” para preservar a confiança pública). Além disso, há quem defenda – mas geralmente sem sucesso – que a sucessão deveria igualmente ser excepcionada quando no momento da transferência do controle ainda não estivesse instaurado processo sancionador, porque o sucessor não deveria ter que arcar com esse “elemento surpresa”.
Ocorre, no entanto, que essa discussão tem-se dado à revelia de inovação na ordem jurídica ocorrida no ano de 2013, a saber, a promulgação da Lei 12.846/2013, a chamada Lei Anticorrupção. A leitura combinada dos seus arts. 4º e 6º leva à conclusão de que a pena de publicação extraordinária da decisão condenatória – cuja essência é muito parecida com a advertência – perece após incorporação, exceto no caso de fraude ou simulação.
É de se notar que a Lei Anticorrupção trata da responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Não se trata, como se vê, especificamente de regra geral sobre a sucessão de sanções aplicadas em outras searas. Por outro lado, a Lei Anticorrupção traz uma dinâmica legislativa que evidencia a opção do legislador sobre a sucessão em caso de penalidades administrativas. E essa opção é a de que, exceto nos casos de simulação ou fraude devidamente comprovadas, a responsabilidade da sucessora não se estende à sanção personalíssima, de que é claro exemplo a advertência. Há, portanto, um novo parâmetro consistente de interpretação para o art. 5º, XLV da CF, incluindo as pessoas jurídicas na proteção geral da pessoalidade da pena.
Essa foi a posição adotada recentemente pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (o popular “Conselhinho”). No Recurso 13.230, que tratou da proibição da realização de empréstimos por parte de corretoras a seus clientes, o Conselhinho reverteu decisão da CVM e entendeu, por maioria, que a empresa incorporadora não deveria ser responsabilizada por uma conduta que não praticou, simplesmente por ter incorporado a corretora que originalmente realizara operações tidas como irregulares. Reconhecendo uma analogia in bonam partem com a Lei Anticorrupção, a conclusão foi referendada pela ausência de indícios de fraude e simulação, e também porque na operação havia ocorrido propriamente uma transferência de controle da empresa entre grupos econômicos, e não mera reorganização societária ou planejamento fiscal. Embora a competência do Conselhinho seja apenas para a seara financeira, parece-nos que esse mesmo raciocínio deva ser aplicável em outros setores regulados.
*Francisco Satiro é professor de Direito Empresarial da FGV e membro titular do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional
No Comment! Be the first one.