No septuagésimo aniversário da proclamação do Estado Novo, em 2007, Lula celebrou a Consolidação das Leis do Trabalho e, num português claudicante, definiu Getúlio Vargas como o presidente “que tirou toda uma nação de um estágio de semiescravidão para tornar os cidadãos com direito a terem um emprego com carteira assinada”. Vargas usinou o Estado brasileiro no torno mecânico do corporativismo. Por meio do Decreto 8.243, o lulopetismo pretende reinventá-lo no torno do supercorporativismo. Como no Estado Novo, a meta é degradar a democracia representativa, subordinando os cidadãos ao império das corporações estatizadas.
O varguismo fez da carteira de trabalho a prova da cidadania, e dos sindicatos, a representação da sociedade. Depois de reiterar o corporativismo tradicional, incorporando as centrais sindicais às estruturas do Estado, o lulismo dá um passo adiante, criando uma segunda prova de cidadania, que é a militância organizada num “movimento social”. No fundo, o supercorporativismo cinde a sociedade em duas categorias de cidadãos, conferindo uma cidadania de segunda classe aos indivíduos que não militam em “movimentos sociais”.
O Estado Novo organizava-se num Conselho da Economia Nacional, dividido em seções da indústria, da agricultura, do comércio, dos transportes e do crédito, formadas pelo governo e pelos sindicatos patronais e de trabalhadores. O supercorporativismo projeta erguer um Estado Novíssimo constituído por “conselhos de políticas públicas” formados pelo governo e pelos “movimentos sociais”. Segundo o Decreto, os “conselhos” setoriais têm a prerrogativa de participar da gestão das políticas públicas. No Estado Novo, Parlamento e partidos foram abolidos. No Estado Novíssimo do lulismo, eles seguem existindo, mas apenas como registros fósseis da democracia representativa.
O Decreto que institui o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) tem como alvo verdadeiro a pluralidade política. Na democracia representativa, o foro institucional de debate político é o Congresso, constituído por representantes eleitos pelos cidadãos. Na “democracia participativa” inaugurada pelo SNPS, o povo passa a ser “representado” por líderes de “movimentos sociais” selecionados pelo governo. Os “conselhos” resultantes serão majoritariamente integrados por militantes que gravitam na órbita do PT. A natureza consultiva dos “conselhos” é quase um detalhe, pois sua característica forte é a permanência: a nova “representação” da “sociedade civil” não está sujeita ao crivo das eleições.
A ordem corporativa varguista repousava, diretamente, sobre o princípio da harmonia social. Arquitetado na moldura democrática, o supercorporativismo lulista almeja produzir a harmonia por meio da administração partidária do conflito. O Decreto institui “mesas de diálogo” destinadas a “prevenir, mediar e solucionar conflitos sociais”. De um lado, as tais “mesas” procuram abolir a negociação direta, sem mediação governamental, entre atores sociais. De outro, concluem o processo de estatização dos “movimentos sociais” aliados ao PT, que já são financiados pelo poder público.
O SNPS não pode ser comparado às audiências públicas eventuais convocadas pelos governos ou pelo Congresso. Nos termos do Decreto, ele se configura como uma vasta estrutura burocrática, de “conselhos”, “mesas”, “fóruns interconselhos” e “conferências”, comandada por um “secretário-geral”. Em termos práticos, isso significa que Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência e imagem holográfica de Lula, converte-se no Lorde Protetor da “democracia participativa”.
Vargas precisou de um golpe de Estado para instituir o Estado Novo. O lulopetismo instituiu o Estado Novíssimo por um mero decreto, na expectativa de que um Congresso desmoralizado curve-se à vontade soberana do Executivo.
Fonte: Folha de São Paulo, 7/6/2014
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