É uma dessas ironias que, logo em que no dia em que o ex-presidente Michel Temer voltou a ser preso, uma das medidas mais absurdas de seu governo, o decreto de indulto natalino promulgado no final de 2017, tenha sido referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Embora o relator, ministro Luís Roberto Barroso, tenha concordado em linhas gerais com a Procuradoria-Geral da República (PGR) a respeito das incongruências no decreto, a divergência, aberta pelo ministro Alexandre de Moraes e vitoriosa por 7 votos a 4, não reconheceu nenhum limite constitucional ao poder de indulto do presidente.
Basicamente, os ministros do Supremo sacramentaram que o chefe do Executivo pode soltar quem quiser da cadeia, desde que o critério valha para todos os presos. Se é verdade que o Judiciário não pode legislar – excesso de que Barroso foi acusado à exaustão ao tentar impôr limites ao indulto –, o STF deu ao Executivo ontem um poder de reduzir penas maior que o de qualquer juiz.
O decreto de Temer mostra a que ponto pode chegar tal poder. Foi, de longe, o mais generoso com os presos nos últimos 20 anos, de acordo com o levantamento feito pela PGR (leia mais aqui).
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Nos decretos de governos anteriores – FHC, Lula e Dilma –, os presidentes exigiam uma pena máxima para conceder a regalia (de 6 ou 4 anos, foi progressivamente aumentada até 12). Temer mandou soltar os presos independentemente da pena a que tivessem sido condenados. Mais que isso, exigiu que, para ser soltos, tivessem cumprido apenas um quinto do período (até Dilma, a exigência era de um terço, mas Temer já a reduzira para um quarto no indulto natalino de 2016).
O significado disso é óbvio: diante da caneta presidencial, a Justiça perde o poder de coerção diante do crime. Mesmo que não valha para crimes hediondos (só faltava essa…), o indulto liberta todos aqueles condenados por corrupção, peculato, lavagem de dinheiro, crimes eleitorais, corrupção e organização criminosa. Noutras palavras, os corruptos.
O indulto não equivale à decisão de um juiz, que pode mandar soltar presos por falhas no processo, de acordo com critérios jurídicos. Também não corresponde às saídas temporárias, comuns no fim do ano, em que algo como 5% dos presos deixam de voltar à cadeia e fogem. É bem mais abrangente. Na prática, corresponde a um perdão. A pena é extinta, e o criminoso quita sua fatura com a Justiça.
Não se questiona o indulto humanitário a gestantes, idosos ou doentes graves. Mas o Executivo não deveria ter o direito de alterar tanto as decisões do Judiciário. Indultos deveriam ser exceção, não a regra. Na dimensão concedida por Temer, 80% da pena, o indulto põe em xeque acordos de delação e faz persistir a sensação de impunidade. No decreto, até multas são perdoadas, dispositivo sob medida para condenados por corrupção.
Pela decisão de ontem, todo preso que tivesse direito a indulto quando o decreto foi promulgado poderá pedir agora para ser solto. Isso inclui não apenas dezenas de condenados na Lava Jato que já cumpriram um quinto da pena, mas dezenas de milhares que estão na cadeia por todo tipo de crime (menos os hediondos).
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Não é preciso ser jurista para entender o absurdo da decisão. Se a Constituição dá tamanho poder ao presidente – no caso, um ex-presidente que acaba de ser preso pela segunda vez, acusado de corrupção –, é evidente que não deveria. Teria cabido aos nossos legisladores restringir o alcance da caneta presidencial nos decretos de indulto. Foram, como de costume, omissos.
Diante do despropósito do Executivo e da omissão do Legislativo, que deveria ter feito a mais alta instância do Judiciário? Compactuar com a libertação em massa de criminosos condenados? Transmitir à sociedade o recado de que, num país em que o cumprimento da lei já é uma exceção, mesmo quando cumprida, ela nada vale?
Pois foi exatamente o que fizeram os sete ministros que votaram a favor do indulto: Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Celso de Mello e o presidente Dias Toffoli. Diante de tamanha falta de bom senso, com que moral, mesmo que tenham razão, poderão reclamar da campanha autoritária contra o STF promovida por setores do Congresso, do governo e nas redes sociais?
Fonte: “G1”, 10/05/2019