O Supremo, mediante suas condicionantes, já normatizou a questão indígena no Brasil, quando do julgamento do caso da Raposa Serra do Sol
O Brasil está vivendo, cada vez mais, uma situação surrealista, com as palavras perdendo o seu significado e ações à revelia da lei sendo feitas como se fossem normais. A questão indígena é um exemplo flagrante dessa situação, com movimentos sociais e a própria Funai criando uma situação de insegurança jurídica, onde coisas que faziam sentido um momento atrás cessam de fazê-lo em um momento posterior. O próprio Plenário da Câmara dos Deputados foi ocupado por indígenas, instrumentalizados por movimentos sociais.
Há poucos dias um hotel, Fazenda da Lagoa, no Sul da Bahia, foi invadido por um grupo de indígenas que reivindicavam a propriedade da terra. Em um primeiro momento, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ala esquerdizante da Igreja Católica, seguindo as concepções da Teologia da Libertação, deu eco a tal ação. A Funai, também nesse momento, entreteve a confusão a respeito, como se fosse uma pretensão legítima.
A cena estava montada para fustigar os proprietários. Acontece, no caso, que o tiro saiu pela culatra, pois a propriedade em questão, segundo um processo de identificação e demarcação em curso, encontra-se fora dessa área. Fotos, aliás, foram estampadas em veículos de imprensa, com os invasores deitados confortavelmente em quartos do hotel vendo televisão.
O efeito foi contrário ao planejado. Em vez da legitimidade da ação, apareceu claramente a sua arbitrariedade. A Funai viu-se obrigada a dizer que a invasão não tinha razão de ser, pois a área, nem segundo os seus critérios amplamente elásticos, não era indígena. Aos proprietários ficou o incômodo da situação, o prejuízo à sua imagem e o transtorno generalizado. Uma pergunta pairava no ar. Será que vai acontecer de novo?
No dia seguinte, aconteceu. Uma casa na área foi novamente invadida. Além de uma garrafa de bebida alcoólica roubada, tudo ficou na ameaça, com os invasores se retirando posteriormente. Não há mais segurança.
Ocorre que o líder desse episódio, um “cacique”, declarou depois, com a maior sem cerimônia, que a invasão foi apenas para dar “Ibope”. Como assim, pessoas são ameaçadas, propriedades invadidas, para produzirem resultados junto à opinião pública? E a lei? E o direito de propriedade?
As palavras estão perdendo o sentido. Quando da saída dos indígenas do hotel foi amplamente noticiado que a retirada tinha se processado de forma pacífica. O que isto significa? Oito aparelhos de televisão foram roubados, o teto da cozinha foi destruído para que os invasores tivessem acesso a mantimentos e bebidas, quartos foram invadidos e pessoas foram ameaçadas. O que há de pacífico nisto?
Imaginem uma pessoa que tenha a sua casa ou apartamento invadido. Na verdade, trata-se de um roubo, com os criminosos levando televisão, bebidas, mantimentos, lençóis e ameaçando os moradores. Alguém se atreveria a dizer que o roubo foi “pacífico”? Essa complacência com o crime e o ilícito produz a generalização da impunidade, propiciando, precisamente, novas invasões. A desresponsabilização dos invasores é um incentivo a que cenas desse tipo se repitam.
Tomemos outro caso, o de uma propriedade invadida estar dentro de um processo em curso de identificação e demarcação, como ocorre frequentemente em todo o país. Enquanto a área não for homologada pela presidente da República, seguindo o devido processo legal, nenhum movimento social ou que procure passar por tal tem o direito de invadir uma área. Tal ação é frontalmente contrária à lei. E, no entanto, isso passou a ser normal, numa normalidade que contraria o estado de direito.
Na verdade, o Supremo, mediante suas condicionantes, já normatizou a questão indígena no Brasil, quando do julgamento do caso da Raposa Serra do Sol. Dentre outras normas, vedou a ampliação de terras indígenas e estabeleceu que um território para ser tido como indígena deve ter como marco temporal a presença indígena efetiva quando da promulgação da Constituição de 1988, salvo casos excepcionais de nulidade flagrante.
Ora, a maioria das terras ditas indígenas em litígio no país é anterior a 1988, com os proprietários tendo títulos que remontam há muitas décadas atrás, com registros civis correspondentes. Se há um conflito de direitos, por exemplo, com as pretensões dos indígenas se contrapondo às dos proprietários, caberia ao Estado equacionar uma situação por ele mesmo criada. Ou seja, deveria comprar terras pelo valor de mercado, pagando o preço justo por áreas que seriam, assim, desapropriadas.
Contudo, o que ocorre hoje é que a dita desapropriação de proprietários rurais para o estabelecimento de indígenas nessas áreas é uma verdadeira expropriação, pois apenas as benfeitorias são consideradas e não a terra nua. Desapropriação significa, na verdade, expropriação. A palavra significa o contrário do que dá a entender. E uma desapropriação justa para ambas as partes, conforme o sentido original da palavra, seria perfeitamente possível, aplicando a Lei 4.132.
A Funai, por sua vez, age à revelia do Supremo multiplicando as portarias de identificação e demarcação, como se a decisão do STF não lhe dissesse respeito. Aliás, esse órgão de Estado é uma verdadeira anomalia republicana. Ele é poder Executivo, editando portarias de identificação e demarcação. Ele é Poder Legislativo, através de Instruções Normativas, que estabelecem as etapas a serem observadas. Ele é Poder Judiciário, sendo ele mesmo instância administrativa revisora de seus próprios atos.
No meio dessa generalização da arbitrariedade, uma declaração da maior sensatez — e lucidez — veio da senadora Katia Abreu. Segundo ela, enquanto o Supremo não julgar os embargos declaratórios da Raposa Serra do Sol, a Funai deveria suspender todos os processos de identificação e demarcação em curso, seguindo o estado de direito e obedecendo às diretrizes de nossa Corte maior. Ao agir ao arrepio da lei, ela termina sendo a grande incentivadora do caos estabelecido no mundo rural, atingindo todos os seus setores.
Fonte: O Globo, 22/04/2013
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