Eles são responsáveis por zelar pelo dinheiro público e cobrar austeridade nos gastos da União, estados e municípios, mas o rigor que deveria ser aplicado aos governantes nem sempre existe entre os próprios conselheiros dos tribunais de contas e muitos deles, em diferentes regiões do país, são réus em processos que correm na Justiça. Levantamento feito pelo “Globo” no Superior Tribunal de Justiça (STJ) mostra que quatro ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) e 37 conselheiros de tribunais de contas estaduais estão sob o escrutínio de algum tipo de investigação. O número equivale a 15% dos 240 ocupantes destes cargos nas 34 cortes existentes no Brasil.
Ao todo, eles respondem a 22 ações penais e 37 inquéritos em pelo menos 15 estados e no Distrito Federal. Os cargos de conselheiros dos tribunais de contas são vitalícios, com salários que podem chegar a R$ 30 mil mensais, e a maior parte deles é ocupada por meio de indicações políticas. Não faltam casos de processos por corrupção abertos por flagrantes em pleno exercício do cargo, até com condenações.
Irregularidades nos estados
O ex-deputado Michel Houat Harb, o Michel JK, por exemplo, foi investigado por escândalos que vão desde a contratação de funcionários fantasmas até enriquecimento ilícito pelo recebimento de diárias de viagens superfaturadas, pagas pela Assembleia Legislativa do Amapá. Condenado por improbidade administrativa e alvo de ações por crimes de peculato, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e formação de quadrilha, Harb tomou posse como conselheiro do TCE do Amapá em maio do ano passado, amparado por uma decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Com base no princípio de presunção de inocência, Lewandowski derrubou decisão do Tribunal de Justiça do Amapá, que impedia a posse de Harb devido às ações penais em andamento. Ao assumir o cargo, ele ganhou foro privilegiado e teve as ações suspensas no TJ do Amapá. Agora, só pode ser julgado pelo STJ. Procurado, o TCE-AP disse que cumprirá as decisões das cortes superiores.
Outro já sentenciado é o conselheiro Valci José Ferreira de Souza, que presidiu o TCE do Espírito Santo entre 2001 e 2007. Em setembro passado, a Corte Especial do STJ condenou Souza a 10 anos de prisão e pagamento de multa pelos crimes de peculato e lavagem de dinheiro. Ele foi acusado de receber propina de contratos firmados para construir ginásios esportivos em municípios do estado, entre 1997 e 2001. A prisão só deve ocorrer com decisão de segunda instância, no caso, o STF. O TCE-ES não comentou as acusações contra Valci Ferreira de Souza.
A série de investigações policiais envolvendo conselheiros é extensa. Há um caso de fraudes para a construção de banheiros para famílias carentes do Ceará: pivô do chamado “escândalo dos banheiros fantasmas”, o conselheiro Teodorico José de Menezes Neto foi afastado, depois de denunciado pelo suposto desvio de R$ 2 milhões em cinco contratos de entidades filantrópicas, entre junho e agosto de 2010. O Ministério Público descobriu que uma assessora do gabinete de Teodorico presidia uma das entidades conveniadas com o estado para a instalação dos banheiros. Parte do dinheiro do convênio teria sido doada para a campanha do ex-deputado estadual Teo Menezes, filho do conselheiro. Segundo a investigação, parte dos banheiros sequer foi construída e outros tinham obras superfaturadas. Fora do tribunal desde 2012, Teodorico aposentou-se em novembro de 2016, segundo o TCE-CE, com salário de R$ 30,4 mil. Ele e o filho negam as acusações.
Há ainda acusações de favorecimento de interesses setoriais. O conselheiro Manoel Paulo de Andrade Neto, o “Manoelzinho dos Táxis”, do TCE do Distrito Federal, é réu em ação penal no STJ, depois de ser condenado em primeira instância por improbidade administrativa por manipulação de auditoria de táxis em Brasília, em 2015. Dono de permissão para dirigir táxis no DF, ele não poderia atuar em decisões sobre o serviço. Contudo, entre 2014 e 2015, o tribunal fez auditoria no setor e o conselheiro pediu vista dos processos, paralisando ação que apurava irregularidades nos serviços de táxi no DF. Ele nega ter prejudicado o andamento do processo ou outras irregularidades.
Em Roraima, Manoel Dantas Dias trocava decisões e arquivamentos de processos na corte por nomeações de familiares em cargos comissionados no governo estadual. Ele foi denunciado por peculato ao STJ. Além disso, na condição de presidente do TCE, às vésperas do Natal de 2009, teria autorizado pagamento de diárias de viagens inexistentes em benefício próprio, para cobrir saldo negativo em sua conta corrente.
Há uma semana, o STJ autorizou abertura de inquérito contra o ex-ministro das Cidades Mário Negromonte, hoje conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia, com base nas delações da Odebrecht. Ele fazia parte da cúpula do PP, partido que dividia as propinas da Petrobras. Foi indicado para o TCE num acordo político com o ex-governador Jacques Wagner, que cedeu uma vaga no TCE ao PP local.
Dias, de Roraima, e Negromonte não foram encontrados para comentar o assunto.
Atualmente, pelo menos 14 conselheiros de TCEs estão afastados por acusações de irregularidades nos estados do Amapá, Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará e Roraima. No Rio, seis conselheiros foram indiciados e são investigados na operacão Quinto do Ouro, acusados de cobrarem propina para fazer vistas grossas na fiscalização de contratos e obras durante a gestão do ex-governador Sergio Cabral. Em março, o ex-presidente do TCE-RJ Jonas Lopes de Carvalho fechou acordo de delação premiada e se afastou do cargo. O filho dele, Jonas Lopes Neto, disse ter levado pessoalmente dinheiro em espécie para alguns conselheiros. O TCE-RJ não comentou as investigações sobre os conselheiros.
Em São Paulo, o conselheiro Robson Marinho teve US$ 2,7 milhões bloqueados pela Justiça suíça em 2009 e está afastado do cargo desde 2015. Ele é acusado de receber propinas da francesa Alstom para supostamente beneficiar a companhia em contratos com o governo de São Paulo.
TCU também é alvo
No TCU, quatro dos noves conselheiros se viram envolvidos nas investigações das operações Lava-Jato e Zelotes — Raimundo Carreiro, Vital do Rêgo, Augusto Nardes e Aroldo Cedraz.
Por pouco, não seriam cinco. Em 2014, uma vaga no órgão foi oferecida ao então senador Gim Argello, que não assumiu por resistência dentro do próprio TCU.
Flagrado na Lava-Jato, Argello foi condenado a 19 anos de prisão pelo juiz Sergio Moro, por favorecer empreiteiras durante os trabalhos da CPI da Petrobras, em troca de propina. Na época, o presidente da CPI era o atual ministro do TCU Vital do Rêgo Filho, então senador pelo PMDB. Ele é alvo hoje de dois inquéritos que apuram envolvimento em casos de corrupção, um deles justamente a participação no esquema que já condenou Argello. O nome do ministro apareceu nas delações das empreiteiras UTC, Andrade Gutierrez e Odebrecht.
O ministro Augusto Nardes é alvo de inquérito que investiga sua participação na venda de decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), vinculado ao Ministério da Fazenda.
O ministro Raimundo Carreiro é investigado com base na delação premiada de Luiz Carlos Martins, executivo da Camargo Corrêa, que relatou pagamentos ao TCU vinculados às obras da usina de Angra 3. Ele foi citado também pelo empresário Ricardo Pessoa, da UTC, mas, neste caso, o inquérito foi arquivado.
Pessoa afirmou em depoimento à Lava-Jato que obteve informações privilegiadas no TCU sobre seus contratos com a Petrobras, tendo como intermediário o advogado Tiago Cedraz, filho de outro ministro do TCU, Aroldo Cedraz. O empresário entregou à Procuradoria-Geral da República tabela com anotações de pagamentos de R$ 2,2 milhões ao filho do então presidente da Corte.
Os ministros do TCU se manifestaram por meio de notas. Raimundo Carreiro disse que prestou esclarecimentos à Polícia Federal e, desde 2015, de forma antecipada, ofereceu a quebra de seus sigilos. Ressaltou ainda que o delator disse apenas ter entendido que o dinheiro “era destinado para o ministro Raimundo Carreiro”, sem, no entanto, afirmar que ele de fato recebeu propina.
Vital do Rêgo disse que colabora com as investigações e confia que a Justiça mostrará que ele não tem relação com os fatos em apuração.
Augusto Nardes informou que não tem nem nunca teve qualquer envolvimento com o Carf, seja indicando membros, participando de discussões ou encaminhando solicitações.
Aroldo Cedraz negou ser investigado no âmbito de processo relacionado à Operação Lava-Jato e disse que está à disposição para colaborar com a Justiça, prestando esclarecimentos, caso necessário.
Fonte: “O Globo”.
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