O crescimento do número de denúncias de irregularidades na área de Tecnologia da Informação levou o Tribunal de Contas da União (TCU) a criar uma força-tarefa específica para investigar os contratos do governo nesta área. Nos sete primeiros meses de 2018, o TCU suspendeu o montante de R$ 780 milhões em licitações de TI suspeitas de irregularidades. Encontrou ilícitos que vão de sobrepreço a direcionamento de licitação. Ao todo, oito pregões milionários foram suspensos e outras estão sob análise. Duas licitações já foram anuladas e outras duas foram suspensas por iniciativa dos próprios órgãos públicos investigados.
A força-tarefa é coordenada pela Secretaria de Fiscalização de Tecnologia da Informação (Selfti) do TCU, e conta com a participação de secretarias do órgão em sete estados (Amazonas, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais e São Paulo). O pente-fino nos contratos foi motivado especialmente pela identificação do mau uso do dinheiro público na área de TI.
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Uma das auditorias da Secretaria de Fiscalização encontrou indícios de sobrepreço de 1.500%. Trata-se do contrato da XYS Tecnologia com o Ministério da Saúde, onde a auditoria também detectou indícios de superfaturamento. As licitações, na ordem de R$ 41 milhões, visavam atender a demandas do Sistema Único de Saúde (SUS). O Ministério da Saúde firmou o contrato com a XYS em 2014. O contrato foi reajustado em outubro de 2015 e sua vigência foi prorrogada até 4 de dezembro de 2017, por meio de dois aditivos sucessivos no valor de R$ 29,9 milhões cada.
Diante das evidências de irregularidade e suspeitas de direcionamento de contrato, a Secretaria do TCU determinou a suspensão dos pagamentos à empresa de TI. A XYS recorreu, mas o ministro do tribunal André Luís de Carvalho manteve a suspensão.
Os maiores indícios de superfaturamento foram encontrados na aquisição de licenças de software. O TCU avaliou os preços unitários de licenças semelhantes contratadas pelo Banco Central, também em 2015, e constatou que o Ministério da Saúde pagou de 700% a 1.500% de sobrepreço pelas soluções.
Numa manifestação recente do TCU, obtida pelo “Globo”, o órgão de fiscalização afirma que o “mau uso do dinheiro público destinado à TI pode estar relacionado com o modelo adotado pelo governo” para fazer contratação com o setor. “Tal modelo favorece a proliferação, na Capital Federal, de pequenos escritórios que nem sequer têm capacidade técnica e estrutura física para atender contratos públicos”, diz o TCU.
Antes mesmo de o TCU suspender as licitações, “O Globo” já havia visitado a sede da XYS, no mês de julho, pois a empresa está entre as 10 companhias de TI que mais receberam dinheiro do governo em 2017. Dados da Associação Contas Abertas, levantados a pedido do “Globo”, apontam que a XYS recebeu o montante de R$ 31 milhões do governo apenas no ano passado. No endereço da empresa — indicado pelos sócios no contrato com o governo –, a reportagem constatou que funciona uma clínica médica, sem nenhum sinal de trabalho na área de TI.
Ao se deparar com ausência da empresa no local, a reportagem foi atrás de um segundo endereço vinculado à XYS, dessa vez um escritório inteligente localizado no Palácio da Agricultura, região central de Brasília. O local é utilizado por outras três dezenas de empresa apenas como endereço postal. Uma funcionária da XYS confirmou que, de fato, a sede da empresa funcionava no local, uma sala de cerca de 30 metros quadrados, onde não havia qualquer sinal de técnicos ou profissionais de TI trabalhando. A atendente, que não quis se identificar, disse apenas que os técnicos da empresa trabalham alocados diretamente no cliente. Questionada sobre o contraste do minúsculo escritório com os contratos milionários, a funcionária, que não permitiu a entrada da reportagem na sala, disse que a XYS não produz tecnologia no local e que a empresa atua apenas com representação comercial.
Mesmo com dois contratos suspensos por suspeita de fraude, a XYS continuou sendo contratada, sem licitação, por órgãos do governo. Um desses contratos foi feito por adesão à ata de preço pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A adesão foi feita tendo como referência o pregão da XYS com um órgão que tem finalidades totalmente diferentes da Anvisa, o Dnit. O contrato estabelece o pagamento de R$ 387,7 mil por mês (R$ 4,6 milhões no ano) para prestação de serviços de TI, mas a Anvisa nem sequer soube esclarecer quais são os reais serviços que a empresa presta e nem quantos funcionários da XYS atuam no projeto.
A Anvisa também se negou a disponibilizar para a reportagem os relatórios de prestação de serviços que a empresa de TI é obrigada a apresentar regularmente. “A informação que temos é que há diversas informações nos relatórios que expõem dados reservados das aplicações da Anvisa e dos usuários”, argumentou, em nota a Anvisa.
O órgão do Ministério da Saúde disse que o contrato com a XYS tem sido cumprido por meio de “teletrabalho”. Ao ser questionada sobre a possível falta de estrutura da XYS para atender a contratos milionários, a Anvisa se resumiu a transcrever trechos do contrato ao qual “O Globo” já tinha tido acesso.
Outra licitação suspensa pelo TCU envolve duas concorrências que, juntas, somam R$ 98 milhões — dos quais R$ 51 milhões seriam sobrepreço — e também estão relacionadas ao Ministério da Saúde. As irregularidades indicam direcionamento de contratação, conforme voto do ministro Augusto Nardes. Uma das empresas envolvidas, a Core Consultoria e Serviços, é controlada por um ex-funcionário do próprio Ministério da Saúde, identificado como André Amaro Toffanelo. O ex-funcionário se identifica nas redes sociais como responsável pelo Plano Diretor de Tecnologia da Informação da Anvisa. Diz também que atuou no Ministério da Saúde na implantação de Arquitetura Orientada a Serviço. No Diário Oficial da União, consta que André Amaro foi nomeado, em 2004, para exercer o cargo de coordenador-geral de Sistemas Internos de Gestão do Departamento de Informática do ministério.
EMPRESA NEGA IRREGULARIDADES
Depois de “O Globo”, no curso da apuração da reportagem, ter comparecido ao escritório da empresa e não ter obtido, por parte dos funcionários que estavam no local qualquer retorno, a assessoria da XYS apresentou uma nota em que rebate as irregularidades apontadas pelo TCU em seus contratos.
A XYS argumenta que “as afirmações que fundamentam a matéria foram elaboradas com base em relatório preliminar do TCU, numa fase ainda embrionária da apuração”.
Sobre as evidências de irregularidade e suspeitas de direcionamento de contrato que levaram o TCU a determinar a suspensão dos pagamentos à empresa, motivo de recurso da XYS que acabou rejeitado pelo ministro do tribunal André Luís de Carvalho, a empresa afirma que a decisão “não se trata do julgamento definitivo da matéria”. Foi, segundo a nota, “uma medida cautelar, que ainda depende de tramitação na Corte, o que inclui voto do ministro relator e, posteriormente, a apreciação em plenário”. A empresa afirma que irá esclarecer as dúvidas do tribunal sobre seus contratos na defesa.
Sobre o fato de os maiores indícios de superfaturamento terem sido encontrados na aquisição de licenças de software – o TCU avaliou os preços unitários de licenças semelhantes contratadas pelo Banco Central, também em 2015, e constatou o sobrepreço pelas soluções –, a XYS argumenta que “os valores percentuais apontados se baseiam em aquisição única feita pelo Banco Central e não em um amplo levantamento realizado pela Corte sobre os valores praticados no mercado de TI na aquisição de soluções similares”. A nota diz ainda que “conforme a declaração do próprio fabricante, o preço praticado na negociação está muito abaixo do valor de aquisição junto ao fornecedor. Portanto, é um valor impraticável, e não deve servir de parâmetro”.
A XYS afirma que “está em atividade desde outubro de 2008, recebendo inclusive premiações que passaram por crivos internacionais que comprovam não só a plena atividade da empresa como plena capacidade de entrega e expertise na execução do contrato”.
Sobre o fato de a sede da empresa ter sido transferida para uma sala comercial diferente do endereço informado no contrato, a XYS argumenta que teve de demitir 80 funcionários e reduzir sua operação em Brasília por causa da “suspensão dos pagamentos determinada na medida cautelar do TCU”. Diz ainda que a XYS “foi obrigada a rever toda a sua estrutura” por causa da suspensão dos pagamentos.
“A empresa possuía uma sede com porte adequado e compatível, com cerca de 800 metros quadrados de área, para o pleno atendimento das demandas existentes e estava em funcionamento no local visitado pela reportagem”, diz a nota.
Sobre os contratos conquistados por meio de ata de preço, quando não é necessária a realização de licitação, a empresa nega qualquer irregularidade: “Todos os acordos entre a empresa e o governo foram fixados por meio de procedimentos licitatórios previstos em lei, como é o caso da adesão à ata de preços”. “Reafirmamos que todos os questionamentos levantados já foram formalmente esclarecidos ao TCU por meio de nossos advogados”, diz a nota.
Fonte: “O Globo”