O leitor talvez não se lembre dessa sigla, EBC. Trata-se da Empresa Brasil de Comunicação, a estatal que controla a TV Brasil e a Rádio Nacional, entre outras emissoras de rádio e televisão, além da Agência Brasil. A EBC também é a responsável por preparar os 20 minutos diários que cabem ao Poder Executivo federal no mais antigo (e esdrúxulo) programa de rádio deste país continente, A Voz do Brasil. Dito assim, parece um ente irrelevante, mas não é.
A EBC custa à União cerca de R$ 750 milhões, um orçamento cinco vezes maior que o da Fundação Padre Anchieta, responsável pela TV Cultura de São Paulo, que em 2015 gastou R$ 140 milhões (desses, apenas R$ 93,4 milhões vieram dos cofres públicos, o restante veio de publicidade e de outras operações comerciais). Não sai barato. Deveria merecer muito mais atenção do governo.
É bem verdade que o Palácio do Planalto tem outras urgências na agenda. Num país em que, a cada semana, pelo menos uma autoridade altíssima despenca, abatida por denúncias calamitosas, em que as cifras da corrupção reduzem o orçamento anual da EBC à insignificância de uma esmola, um presidente da República tem mais o que fazer além de se preocupar com o funcionário que edita A Voz do Brasil. Não obstante, o presidente interino, Michel Temer, foi se ocupar justamente disso. Mas ao não dedicar a devida atenção ao tema, errou feio.
No dia 17 de maio ele exonerou o diretor-presidente da EBC, o jornalista Ricardo Melo. Profissional competente, íntegro e respeitado pelos pares, Melo sofreu um agravo ao ser demitido como foi. Ele tinha tomado posse de seu cargo em 10 de maio e, de acordo com a Lei 11.652, de 7 de abril de 2008, estava investido de um mandato de quatro anos. Mesmo assim, foi alijado de suas funções legais, sendo exposto a um constrangimento indevido e imerecido. Na defesa de seus direitos, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para reaver o posto e a estatal passou a viver dias de tensão. O limbo de interinidade alcançou-a. Entre a posse de Ricardo Melo (no dia 10 de maio) e sua demissão (dia 17 de maio), o Senado Federal afastou a presidente Dilma Rousseff, o que já era mais do que esperado. Ao decapitar a EBC, a intenção do substituto temporário de Dilma teria sido – como se especula em artigos e notas na imprensa – cortar pela raiz o aparelhamento ideológico que a titular teria plantado ali. A justificativa não passa de pretexto. A insensível exoneração não vai curar a doença do aparelhamento ideológico – apenas o mudará de lado, como sói enunciar a coisa.
Sem dúvida, a EBC fazia propaganda pró-Dilma, uma propaganda alucinada. A Voz do Brasil, por exemplo, na semana que antecedeu a votação do impeachment na Câmara dos Deputados, virou um vozerio contra o “golpismo”, num claríssimo (e ridículo) desvio de função. Sob Dilma, a estatal era partidarizada, é verdade, mas o ponto não é esse – o ponto é que ela sempre, ou quase sempre, foi assim. O falatório governista não é exceção na história da EBC (e de sua antecessora, a Radiobrás), mas a regra. Até hoje. Até agora. Ouça A Voz do Brasil hoje à noite e você vai comprovar: o governo interino é saudado a toda hora como a própria “salvação nacional”. Sai de cena o populismo esquerdotário, entra em cena o temerismo temerário. O sinal é invertido. O governismo é o mesmo.
O presidente da República teria outros instrumentos, mais legítimos e menos deselegantes, para mudar tudo na EBC. Poderia ter proposto ao Congresso Nacional um projeto de lei (ou medida provisória) alterando as regras internas da estatal. Depois de aprová-la, poderia seguir com a troca do comando. Havia mais alternativas, igualmente legais, mas elas não vêm ao caso agora. Seriam menos canhestras, mas igualmente erradas.
O problema real é menos de forma e muito mais de substância. Esses atropelos planaltinos vão ferir de morte a causa da comunicação pública no Brasil. Fui presidente da extinta Radiobrás entre 2 de janeiro de 2003 e 20 de abril de 2007. A partir da carcaça da antiga estatal procurei construir uma prática jornalística minimamente apartidária. Meu trabalho talvez tenha contribuído um pouco para uma discreta mudança de cultura, não mais que isso. Depois da minha saída vieram alterações estatutárias positivas, mas insuficientes. Com a criação da EBC o diretor-presidente ganhou um mandato de quatro anos – o que não existia na Radiobrás –, mas o poder dentro da empresa foi mantido nas mãos do Conselho de Administração, diretamente controlado pela Presidência da República e por uns poucos ministérios centrais.
Resultado: a EBC, como a velha Radiobrás, não tem autonomia editorial, política e administrativa (nisso, é mais atrasada que a Fundação Padre Anchieta). Para piorar as coisas, é vinculada à Presidência da República, que manda e desmanda lá dentro. O certo teria sido vinculá-la ao Ministério da Cultura e dotá-la de um conselho independente (com representantes da sociedade civil), encarregado de eleger o diretor-presidente (hoje nomeado pelo presidente da República, claro).
Foi assim que a EBC ficou aquém do que a democracia espera dela. É um monstrengo estatal-governista, embora tenha uma lei capenga a protegê-la. Em vista dessa lei, a exoneração de seu diretor-presidente foi um erro formal, um sinal (involuntário, espera-se) de descaso com a liturgia estabelecida em ato jurídico perfeito.
Há notícias de que o Planalto se deu conta do deslize e estaria preparando uma medida provisória para dar legalidade (provisória) à exoneração. Se for mesmo nesse rumo, vai agravar o retrocesso. A República certamente não precisa de uma estatal desse tamanho para edulcorar a imagem de quem governa, mas a sociedade brasileira precisa de uma boa instituição de comunicação pública, independente, plural, arrojada e altiva. O PT não teve a grandeza para criá-la. O poder que aí está parece não ter a consciência.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 26/05/2016.
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