Por Bruno Meyerhof Salama e Conrado Valentini Tristão
O Rei Carlos I da Inglaterra, que vestiu a Coroa inglesa de 1625 até a sua execução, em 1649, herdou de seu pai um reino em precária situação financeira. Herdou também uma tensa relação com o Parlamento – órgão que, à época, era convocado pelo Rei para decidir, fundamentalmente, sobre a instituição de tributos ao monarca. Os historiadores nos contam que o reinado de Carlos I se deu em um momento conturbado da história inglesa: não obstante a escassez de fundos, o Rei teve que lidar com uma longa guerra contra a Espanha, com rebeliões na Escócia e na Irlanda e com as dificuldades inerentes a uma política externa dispendiosa.
Essa história, de um governante diante de uma crise econômica e institucional, pode nos trazer algumas reflexões interessantes. Vejamos: em busca de mais tributos, Carlos I se viu obrigado, ao longo de seu reinado, a convocar o Parlamento por diversas vezes, assistindo, na maioria delas, aos seus pleitos por recursos financeiros fracassarem. No entanto, diferentemente do que seria de se imaginar, o fracasso de tais pleitos não decorria exatamente de uma discordância técnica por parte do Parlamento quanto às medidas mais adequadas a serem tomadas para o bem da Inglaterra. Ao contrário, a causa dos recorrentes fracassos residia no próprio desvirtuamento das discussões travadas no Parlamento: depois de convocados, os parlamentares prontamente retiravam o foco do debate das questões que, em primeiro lugar, haviam levado à sua convocação e traziam à roda temas pouco claros ligados à defesa de supostos “direitos imemoriais” que os membros do Parlamento deteriam. E frise-se: em 1641, ao perguntar aos demais parlamentares quais seriam as “leis fundamentais do reino” (a outra roupagem dos “direitos imemoriais”), Edmund Waller provocou um silêncio constrangedor na Câmara dos Comuns.
Tal postura dos parlamentares não consistia em irracional despreocupação com questões que, de uma forma ou de outra, afetariam toda a Inglaterra, mas, antes, em planejada manobra. Frente à premência por recursos da Coroa, o Parlamento transformou-se em um tentador mecanismo institucional de afirmação política, sendo utilizado por parlamentares que, ansiosos por garantirem “direitos de liberdade” (leia-se privilégios), eram suficientemente calculistas para não iniciarem um confronto armado – ao menos em um primeiro momento.
Passados quase 400 anos desde os eventos acima narrados, o Parlamento representa, hoje, instituição diversa daquela que desafiou o monarca inglês. Mas há algumas semelhanças, bastando, para percebê-las, que atualizemos alguns dos protagonistas de nossa história. Coloquemos as vestimentas de Carlos I no Presidente Michel Temer, cedamos os assentos dos partidários de Oliver Cromwell aos nossos congressistas empenhados em garantir os privilégios e substituamos a necessidade de instituição de tributos pela urgência do estancamento do crescimento dos gastos públicos. Encenamos, assim, o trágico cenário político atual brasileiro, no qual nossas instituições prestam-se a uma mesquinha disputa pelo poder.
O nosso Congresso, à semelhança do antigo Parlamento inglês, vale-se dos espaços institucionais decisórios para afirmar-se politicamente. Por meio de palavras de ordem tão pouco claras quanto as indefiníveis “leis fundamentais do reino” ou os “direitos imemoriais” dos parlamentares ingleses, e aproveitando-se da premente necessidade de adequarmos o orçamento público brasileiro, a nossa classe política mais inescrupulosa – hoje, bem financiada por grupos de pressão interessados em manter as mais perversas iniquidades na disputa pelo bolo estatal, especialmente o previdenciário – se opõe aos ajustes econômicos necessários.
Quando os meios institucionais utilizados para a afirmação política falharam, o Parlamento inglês se atirou em uma sangrenta guerra civil contra a Coroa, a qual teve como um de seus episódios mais dramáticos a execução do Rei Carlos I. Provavelmente a classe política brasileira que impede a aprovação do ajuste orçamentário não chegará a tanto. Não obstante, em vista dos milhões de brasileiros que dependem da saúde financeira do Estado, as delongas impostas pelos nossos políticos às reformas necessárias denotam insensibilidade digna do século XVII.
Fonte: Mercado Popular, 08/12/2016.
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