Demétrio Magnoli não tem papas no teclado. Seus textos têm como marca a contundência. E ela pode recair sobre qualquer ideia, disposta em qualquer ponto do espectro ideológico. A crítica aguda do sociólogo, porém, não nasce da agressividade gratuita ou do escárnio ligeiro. Vem da liberdade com a qual escreve – o que pode ser bem mais doloroso do que um mero pontapé. Em suma, e parafraseando o autor, ele não tem por hábito sacrificar o rigor da análise no altar dos afetos. Vem daí grande parte da força dos artigos que publica com regularidade em “O Globo” e na “Folha de S.Paulo”. Aqui, ele defende ações que considera imprescindíveis para a reconstrução do país. A primeira delas é a criação de um Estado que pertença aos cidadãos e não a partidos políticos e a seus associados de plantão.
Época Negócios: Como reconstruir o Brasil?
Demétrio Magnoli: Temos, antes disso, de construir algumas coisas. Em primeiro lugar, precisamos de um Estado público. Hoje, a administração foi totalmente capturada pelos interesses dos partidos políticos que formam a coalizão de governo. O escalão mais alto do funcionalismo, que deveria ser preenchido por profissionais escolhidos com base em critérios como a meritocracia, sempre foi reservado à indicação dos parlamentares. Mudar isso é parte importante da criação de um Estado moderno.
Hoje, o Estado é privado?
Ele é propriedade dos partidos da coalizão do governo. Veja a Petrobras. Como diretores de uma estatal podem ser indicados a partir de apontamentos políticos? E chegamos a um ponto em que esse tipo de coisa não é mais feito às escondidas, com um pouco de vergonha. É parte de um programa de governo.
Como mudar esse quadro?
Isso envolve uma série de medidas. Entre elas, estabelecer uma nova governança nas estatais. Temos ainda de reduzir de forma brutal o número de cargos públicos de livre nomeação. Eles somam perto de 40 mil no país.
O que mais um Estado refém dos políticos compromete?
Quase tudo. O Ministério da Educação (Mec), por exemplo. Os programas curriculares mínimos feitos pelo Mec, válidos para todo o país, deveriam ser educacionais. Não poderiam ser ideológicos. Mas não é isso o que acontece. Temos uma série de ministérios e secretarias exclusivamente dedicados à política. É o caso da Secretaria da Igualdade Racial. O que é isso senão um instrumento de política? Não quero dizer que vamos formar um governo apolítico. Ele tem de dar orientações gerais com base em uma plataforma a partir da qual foi eleito. Mas precisamos separar o que é gestão do que é política. Os cidadãos têm o direito de se relacionar com uma administração que não seja partidária, que não discrimine.
O que mais precisa ser construído?
Um consenso em torno da política econômica, ainda que mínimo, é urgente. Sempre teremos divergências nesse campo. É bom que seja assim. Mas regras básicas têm de ser fixadas. A independência operacional do Banco Central (BC) é uma delas. Na prática, ela deixou de existir desde a posse do Alexandre Tombini (atual presidente do BC). O que é a ideia de buscar o centro da meta da inflação senão uma piada? Outro ponto é o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ela não é seguida há tempos. As últimas pedaladas representam somente a exasperação de um processo. O país também não pode mais produzir déficits fiscais de longo prazo, estruturais. Sem um consenso em torno desses pontos, o Brasil vai continuar passando por ciclos que vão da bolha para a recessão profunda.
Esse consenso parecia existir desde o Plano Real.
Sim, mas isso mudou desde o segundo mandato de Lula. Foi após a crise do mensalão. No plano da política econômica, ele cedeu às correntes mais ideológicas do PT. Do ponto de vista internacional, isso aconteceu no contexto da crise de 2008, sob o pretexto de adotar políticas anticíclicas que, na época, eram de fato necessárias. Houve maior interferência do Estado. Mas, em 2009, as medidas já tinham surtido o efeito desejado. Era hora de tirar o pé do acelerador. Lula pisou fundo. Isso foi bem antes da declaração formal da “nova matriz econômica”. O presidente cedeu aos ideólogos que, por alguma razão misteriosa, se dizem keynesianos. Mas Keynes (John Maynard Keynes) nunca defendeu que inflação e bolha abrissem o caminho para o desenvolvimento econômico.
Essa é a base do nosso capitalismo de Estado?
Sim. Ele é mantido por uma aliança entre grandes empresas estatais e privadas – as tais campeãs nacionais –, as empreiteiras, alguns grandes bancos, todos sustentados por financiamento estatal via BNDES e outras piscinas de capital, como os fundos de pensão. Essa ideia não é nova no país. O capitalismo de Estado surgiu com o Brasil moderno, com Getúlio Vargas. Historicamente, o que aconteceu nos governos Itamar Franco e FHC não foi o normal do Brasil. Esse período foi um pequeno parêntese de economia de mercado na nossa história. Nossa tradição é varguista e teve duas grandes restaurações: a primeira na ditadura militar e a segunda com Lula.
Como fixar os consensos que o senhor propõe?
Tem de ser em um momento pós-Dilma.
Por quê?
Simples: é impossível acreditar que um governo vai fazer exatamente o contrário do que pensa. Quando Dilma convoca Joaquim Levy faz isso em desespero de causa, com a intenção de erguer uma pequena ponte. Ela acreditava que, em um ano, o problema fiscal seria ao menos ajustado. Levy faria o trabalho sujo e, em seguida, seria substituído por Nelson Barbosa, ministro do Planejamento, o mentor da nova matriz econômica.
Nem a ponte deu certo.
Sem investimento e confiança, o ajuste não vai funcionar. Ele só aprofundará a recessão. A base do ajuste é o aumento de tributos. Mas não existem medidas paralelas de estímulo à economia, à produtividade. Precisamos de reformas ligadas à infraestrutura, ao mercado de trabalho, à regulação financeira e ao comércio exterior. É importante reabrir a economia brasileira para o mundo, fazer acordos internacionais. Esse conjunto de medidas poderia dar suporte a um ajuste. Sem isso, ele não passa de um esparadrapo usado para estancar uma ferida hemorrágica. O ideal seria desarmar a armadilha do capitalismo de Estado para que o ajuste funcionasse. É errada a ideia de primeiro fazer o ajuste para depois desarmar essa bomba.
Lula tem chances de ser eleito em 2018?
Hoje, acho improvável. Assistimos no mundo a uma desvalorização das commodities e uma reversão do superciclo de liquidez internacional. Isso tem consequências políticas. Pouca gente notou, mas esse processo ajudou a estabilizar uma série de regimes em países emergentes: Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, além do chavismo, na Venezuela, do kirchnerismo, na Argentina, e do lulopetismo, no Brasil. O fim desse ciclo internacional tem consequências. Gera uma crise nesses modelos. Putin e Erdogan fogem da crise por meio de guerras. O kirchnerismo, por outro lado, sofreu um golpe fatal, e o chavismo, uma pancada profunda. A próxima eleição no Brasil pode ser afetada por esse fenômeno, que agrava e se mistura aos problemas internos. Além do mais, hoje as pesquisas indicam que Lula perderia para qualquer outro candidato no segundo turno.
O que é o lulopetismo?
O termo não tem sentido pejorativo. Ele é descritivo. O discurso petista tradicional era o de classe, com “os trabalhadores contra os empresários”. Lula muda isso adotando “o povo contra a elite”, algo parecido com Vargas. O lulopetismo é a associação entre esses dois discursos, que é difícil, contraditória e tensa.
Como a oposição está atuando?
Ela é incompetente demais. Ela fez tudo para salvar o lulopetismo dele mesmo. Associou-se a governistas do PMDB, envolvidos no escândalo da Petrobras. Votou contra alguns pilares doutrinários da própria oposição, inclusive do PSDB, como as regras previdenciárias criadas no governo FHC. Aderiu ainda a um pedido de impeachment que tem um argumento misterioso para o grande público. Fez isso diante de um país desolado, vivendo sob o fardo de uma recessão. Esse tipo de atitude permite que as pessoas olhem para Brasília e pensem que todos os gatos são pardos em uma noite escura.
A presidente Dilma Rousseff termina o mandato?
Acho que a questão não é interromper o mandato de Dilma Rousseff. O mais importante é que os brasileiros entendam quais as consequências do atual modelo de organização do Estado e da economia. Ele, na prática, sabota o nosso futuro.
Fonte: Época Negócios.
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