“Ninguém olha o mundo com olhos inocentes. Sempre se enxerga o mundo editado por um conjunto definido de costumes, instituições e modos de pensar”. (Ruth Benedict)
A frase do deputado Edmar Moreira, recém eleito e já demissionário da corregedoria e da 2ª vice-presidência da Camara Federal, no momento de uma nova etapa legislativa, remete aos velhos e pouco discutidos axiomas da amizade na vida política nacional.
Ela abre a porta para rever o que em, ´Carnavais, Malandros e Heróis´, eu caracterizei como sendo o ´dilema brasileiro´. A indecisão (que acaba virando decisão) entre as normas da amizade (muito mais aristocráticas do que patriarcais ou burguesas em origem e estilo) centradas na ´pessoa´ (como uma subjetividade feita de relações sociais hierarquizadas); e a lei que, valendo para todos, administra cidadãos-indivíduos com direitos e, eis o ponto duro de politizar e engolir, deveres! Com as tais obrigações coletivas que nas democracias frequentemente subordinam os elos pessoais.
O bloqueio de uma ética de respeito e obediência às leis tem tudo a ver com o com o vício da amizade como um mecanismo de supressão de algo básico numa democracia liberal. O constante cálculo moral que baliza a consciência dos nossos deveres para com os da casa; em confronto direto com as nossas obrigações para com as normas que governam a rua – o mundo da esfera pública. Ninguém precisa virar calvinista, mas o abandono desse calculo, tido como burguês pelas nossas elites, torna a coisa pública – a ´república´ que tanto amamos – uma terra de ninguém. Um espaço sistematicamente apropriado por bandidos de todos os calibres alguns, inclusive, eleitos pelo povo. Sem a discussão dos limites entre o velho estilo aristocrático de vida social e as coerções democráticas, que sujeitam todos a preços, impostos e leis, continuaremos a privilegiar ladrões bárbaros ou cordiais que, pela amizade e em seu nome, tornam elásticas todas as regras. Sabemos que não há como resolver de modo automático a decisão de ficar com os amigos ou com a lei, mas a frase do deputado revela como é intolerável ficar com apenas um lado, esquecendo em causa própria o outro.
Para mim, o castelo do deputado próximo a São João Nepomuceno – onde, adolescente, vivi e aprendi os axiomas sutis e abstratos das amizades que obrigam a devolver o favor recebido, a mentir em nome do amigo, a pagar amor com amor, a considerar o inimigo do amigo um inimigo, a olhar a mulher do amigo como homem, a não falar mal do amigo em toda e qualquer circunstância; e, eis uma coisa tão difícil quanto não pecar contra a castidade, de ter a coragem de resistir aos amigos – é bem menor do que a brecha aberta pela frase falhada, dita por quem vive o parlamento como um clube de luxo, e não como um instrumento de melhoria coletiva.
Ela tem o mérito, como diria o Oliveira Vianna do ensaio ´O Papel dos Governos Fortes no Regime Presidencial´ (publicado no livro ´Pequenos Estudos de Psicologia Social´, em 1923), de ´sintetizar´ um fator central de nossa ´psicologia política´, a saber: ´A incapacidade moral de cada um de nós para resistir às sugestões da amizade e da gratidão, para sobrepor às contingências do personalismo os grandes interesses sociais, que caracteriza a nossa índole cívica e define as tendências mais íntimas de nossa conduta no poder.´ É justamente nessa fronteira indefinida entre amigos, máquinas partidárias e administradores que jaz os desequilíbrios do poder nacional. Um poder, que para Oliveira Vianna, tudo congrega e justifica. Sem a consciência dos limites entre o poder do governo e o poder das amizades (e partidos), confundem-se os contornos entre o público e o privado Contam-se nos dedos casos como os de Feijó (mencionado no ensaio de Oliveira Vianna) e de Vargas, nos quais a motivação pessoal foi inibida em nome de algo maior. Evitar o debate dos limites é o traço distintivo das ´agremiações políticas´ que, no poder, trabalham para seus próprios interesses, tendo o direito (ou o vício) de não separar o partido do país que agora possuem e controlam. É isso que engendra a ´energia corporativa´ cuja base é a personalização do poder. É ela que promove a emergência do elemento carismático e salvacionista, capaz de produzir paradoxos, como ocorre quando um presidente eleito por um partido marcadamente ideológico, governa populisticamente. Ou quando o corrupto e o canalha de ontem, torna-se o aliado redentor generoso de hoje, porque aceita o nosso pedido de perdão. Na amizade e no personalismo (que salva os ´nossos´), encontramos a raiz dos famosos ´dois pesos e duas medidas´ que tem caracterizado, em maior ou menos grau – sejamos honestos -a dinâmica política de quase todos os governos.
Tem sido somente agora, graças a estabilidade da economia, que começamos a estranhar o papel da amizade na ordem política e no modo de ´fazer política´ no Brasil. Esse estilo predominantemente fundado no primado da casa sobre a rua e do ´você sabe com quem está falando?´ sobre as leis gerais.
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