O incômodo do mercado frente à política econômica do governo não é infundada. Para Samuel Pessôa, especialista do Instituto Milenium e chefe do Centro de Crescimento Econômico do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (IBRE/FGV), a desaceleração do crescimento brasileiro se deve à adoção de uma agenda nacional-desenvolvimentista para o país. Contrário ao discurso oficial que aponta a crise econômica mundial como causa dos problemas internos, o pesquisador diz que o orçamento brasileiro não comporta um Estado de bem-estar que financie, via BNDES, o desenvolvimento econômico e social. Leia a entrevista:
Instituto Millenium – O senhor afirma que o Brasil, desde 1980, foi capturado por uma “armadilha da renda média”. Países nessa situação têm dificuldade de competir com nações de renda mais baixa e com países mais ricos, seja com produtos de baixo valor agregado, seja com sofisticação de produtos e serviços. Como atualmente o Brasil se enquadra nessa questão?
Samuel Pessôa – Nós continuamos na renda média e temos uma exportação de baixa e média tecnologia, com exceção da Embraer. Em 20 anos, nesse quesito, não houve muitas mudanças.
Imil – O senhor enxerga possibilidades para escaparmos dessa armadilha?
Pessôa – Vai ser um processo gradativo que levará algumas décadas. Não sairemos dessa situação nem a médio prazo. O atraso do Brasil com relação às nações líderes é um fenômeno do século 19. Na virada do século 18 para o século 19, o PIB brasileiro marcava aproximadamente 70% ou 80% do PIB americano. Do século 19 para o século 20, caímos para cerca de 20% do PIB dos EUA e hoje mantivemos esse percentual. Estamos ainda no mesmo patamar. No século 21, vamos ganhar mais terreno frente aos países líderes, mas não seremos tão rápidos como foram Coreia do Sul, Japão e até mesmo a China. O processo que acabará com nosso atraso brutal de produtividade de trabalho vai ser longo. Se hoje somos 20% dos EUA, acho que no final do século seremos cerca de 60%, 70%.
Imil – Nos últimos anos o governo Dilma estimulou fortemente o consumo e reduziu os juros a “níveis históricos”. Os resultados obtidos têm sido insatisfatórios e o governo aponta a crise como o fator da desaceleração. No entanto, alguns países não apresentaram quedas do crescimento tão acentuadas como o Brasil. Em que medida os fatores externos contribuem para os nossos atuais problemas econômicos?
Pessôa – Eu acho que o regime de política econômica adotada pelo governo, a partir de 2009, está totalmente equivocado. A maior parcela da nossa desaceleração, na minha opinião, se deve a isso. É verdade que e o mundo piorou, mas países como Chile, Peru, Colômbia e até mesmo México registraram baixíssimas perdas de desempenho. Nossa situação não se explica muito pela situação internacional. Levando em conta que o Brasil crescia a 4% durante o governo Lula e agora cresce a 2% – uma perda de 2% – eu diria que 0,5% desse percentual está relacionado à situação internacional; 0,5% devido ao esgotamento do mercado de trabalho e 1% pela piora do regime econômico do governo.
Imil – Em uma recente entrevista, o senhor disse que o Estado brasileiro atualmente abraça o nacional-desenvolvimentismo ao mesmo tempo em que tenta manter uma espécie de walfare state. Como esse claro distanciamento de políticas liberais prejudica nosso desempenho econômico e social?
Pessôa – Há duas agendas no orçamento público que juntas são insustentáveis. A primeira é estrutural, no sentido de que é uma decisão da sociedade tomada na Constituição de 88, que estabelece o Brasil dentro do escopo do bem-estar social – o walfare state – ou seja, que oferece seguros aos indivíduos que estão submetidos aos sinistros naturais de uma economia de mercado. Acho difícil algum político defender uma agenda contrária a esse Estado provedor.
A outra agenda, menos estrutural, foi implantada a partir de 2009, cujo marco é a mudança das diretrizes econômicas da era Palocci [Antonio Palocci, ministro da Fazendo no governo Lula, até 2006] para a era do ministro Guido Mantega. Essa mudança é a adoção de um projeto chamado nacional-desenvolvimentismo, vigente no país num período compreendido entre as décadas de 1930 e 1980. Essa forma de conduzir a economia é baseada em programas que subsidiam pesadamente o capital físico e coloca o Estado na frente do processo econômico, determinando a natureza e os detalhes da economia. O maior exemplo desse regime é o papel do BNDES na alocação do crédito a longo prazo com forte subsídio privado. O problema é que o nacional-desenvolvimentismo é muito caro e os resultados têm sido frustrantes.
Imil – Esse modelo será deixado de lado?
Pessôa – Dado que a sociedade não defende esse projeto, que foi adotado por questões ideológicas dos nossos representantes políticos e por grupos de pressão, principalmente da indústria, acredito que essa segunda “agenda” será desfeita em algum momento. Não cabem dois Estados dentro do orçamento brasileiro. Acredito que a guinada para o nacional-desenvolvimentismo de 2009 ou vai ser desfeita em 2015 ou nós precisaremos de uma transição política para ela ser acabar. Mas, mesmo com o welfare estabelecido, acho que o ganho de eficiência será uma pauta futura.
Imil – Como assim?
Pessôa – A abordagem de questões que busquem soluções para que o Estado melhore os serviços essenciais, como educação, saúde, segurança e justiça. Essa pauta melhora a governança do setor público. Temos que reformar o Estado de dentro para fora. Alguma coisa avançou um pouco no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando o ministro Bresser-Pereira estava à frente da pasta de Reforma do Estado. Desde o segundo mandato FHC essa pauta foi deixada de lado. Certamente o governo petista tem poucas condições de assumir essa agenda por ser um governo completamente capturado pelas corporações de funcionários públicos. Vamos ter que esperar mais um tempo para que essas questões progridam.
Imil – Especialistas apontam que a falta de direcionamento econômico e a expansão de programas sociais não sinalizam para um rumo econômico sustentável e eficiente. O governo vem perdendo a credibilidade frente ao mercado e o discurso oficial tende a valorizar o “sucesso” de concessões para neutralizar esse “insucesso”. Esse ano, com as eleições, o senhor acha que Dilma vai tentar acalmar os ânimos do mercado?
Pessôa – Ela já está fazendo isso com a alta de juros. Dilma percebeu que não dava pra continuar com essa “intervenção branca” no Banco Central. Com os juros mais altos acho que ela segura a economia até as eleições.
Imil – E como senhor avalia a inflação em ano eleitoral? Em que medida o crescimento do crédito na economia contribui para o fator inflacionário?
Pessôa – Há dois tipos de credito no Brasil, o direcionado e o livre. O direcionado é aquele, em geral, intermediado pelos bancos públicos, seja para as empresas via BNDES, seja para os produtores agrícolas via Banco do Brasil, seja o credito imobiliário – e agora o Minha Casa, Minha Vida, através da Caixa Econômica Federal. Esses fazem parte de um pacote de crédito subsidiado.
O crédito livre é o que todo mundo faz via cartão de crédito, cheque especial, crédito pessoal etc. Esse já vem crescendo a taxas próximas a zero há quase um ano. O que mantém o crédito total crescendo, em termos reais, a 8% ao ano, são os créditos direcionados. A carteira de crédito direcionada continua crescendo em termos reais a 20% ao ano. Em grosso modo, temos o credito direcionado crescendo a 20% e crédito livre crescendo a 0%. Tiramos a média de cerca de 10%, um pouco menos, na verdade. Uma parte grande do ajustamento já ocorreu. Evidentemente, o período que o crédito cresce muito rápido é um período que há maior pressão inflacionária. Seria melhor que o governo começasse a colocar um pé no freio no credito direcionado. Isso ajuda o Banco Central a conter a inflação.
Imil – O senhor acredita que isso acontecerá em 2014?
Pessôa – Acho que o governo vai tentar fazer algum ajuste sim, mas não será brusco porque isso pode ser ruim para ele. Vai ser um processo mais lento, para os próximos quatro ou cinco anos.
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