Uma das mais importantes poetas em língua alemã do século 20, a austríaca Ingeborg Bachman, foi testemunha da invasão nazista a sua cidade quando tinha apenas 11 anos. Não por acaso, passou a vida temendo o retorno de ideias associadas ao fascismo, que julgava estarem presentes na sociedade, mesmo que de forma mascarada.
Em 1953, publicou um magnífico poema com o título “Tempo Adiado”. Na boa tradução de Claudia Cavalcanti, alertava: “Vêm aí dias piores/ O tempo adiado até nova ordem surge no horizonte”.
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A força desses versos nos remete, sem dúvida, ao que vivemos hoje no mundo. Sim, vivemos tempos de grandes avanços em inclusão de crianças e jovens na escola, de redução de violência causada por guerras e crimes, de queda de mortalidade infantil e materna e de democracias sólidas em boa parte do mundo. Mas a percepção popular não é essa e, embora a pobreza venha diminuindo, a desigualdade social e o sentimento de exclusão só fazem aumentar, o que não prenuncia tempos tranquilos.
O cientista político inglês David Runciman comentou, em livro recente, a curiosa situação em que vivemos no planeta. Segundo ele, embora a democracia se mostre consolidada em países desenvolvidos e golpes militares sejam improváveis, há um descontentamento na sociedade frente à falta de representatividade ou de pertencimento que caminha junto com as consequências do que se convencionou chamar de Revolução 4.0.
Os órfãos do nacionalismo e de princípios unificadores típicos de épocas de guerra clamam também contra “burocracias transnacionais” e políticas ambientais que destroem empregos e renda, criando as bases para a ascensão de governos populistas que coloquem as instituições em risco, sem precisar derrubar presidentes. A partir de uma litania contra a grande imprensa, o Judiciário e o Legislativo —no que encontram eco nas ruas reais ou virtuais— promovem o que chama de “executive aggrandizement” (ou agigantamento do Executivo, em tradução livre).
Para isso, precisam mobilizar um exército de seguidores —o que não é difícil para quem se coloca como a voz dos que não se sentem representados pela ordem anterior—, a quem se pede lealdade acrítica, o que permite evitar o difícil trabalho de implementar políticas públicas ou atender a direitos. Nesse sentido, a democracia segue funcionando, mas corre o risco de se apequenar.
Mas, como dizia Churchill, a democracia é o pior sistema de governo, fora todos os outros, e a destruição por desfiguração desse tipo de governo não traz consigo a preservação de sociedades prósperas e harmônicas. Por ora, fica o tempo suspenso, ou adiado.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 13/3/2020