A imagem de um helicóptero disparando indiscriminadamente para o solo parecia saltar de um documentário sobre a guerra do Vietnã. Tratava-se, no entanto, de um helicóptero da polícia, chamado de “caveirão voador”. O alvo não eram os vietcongues, mas sim a população civil da comunidade da Maré.
A cena apocalíptica fez parte de uma operação da polícia do Rio de Janeiro, com apoio logístico das Forças Armadas, que tinha por objetivo declarado cumprir 23 mandados de prisão. O resultado foi a morte de sete pessoas, entre as quais Marcos Vinícius, de 14 anos, que buscava chegar à escola. Nenhuma pessoa foi presa.
Alvejado pelas costas, ao tentar se proteger do tiroteio, Marcos Vinícius foi levado a Unidade de Pronto Atendimento da Maré. A mãe de Marcos, Bruna Silva, conseguiu chegar ao local enquanto o filho ainda estava vivo. Marcos Vinicius lhe disse que o tiro teria partido de um “blindado” e perguntou: “ele não viu que eu estava com roupa de escola, mãe?”
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De acordo com a equipe da organização Redes da Maré, o chão da comunidade está com muitas marcas de tiros e munição. Perto das escolas do Campus da Maré 2 e da creche da Vila dos Pinheiros, foram registradas mais de cem marcas de tiros. As mortes de Marcos Vinícius e mais seis “suspeitos” não podem, assim, ser consideradas um acidente, mas sim fruto de mais uma operação negligente e brutal.
Marcos Vinícius foi velado no Palácio da Cidade, sede da Prefeitura do Rio de Janeiro, recebendo a consideração que lhe foi negada em vida. Nos últimos 30 anos mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de homicídios no Brasil.
Em sua grande maioria são jovens negros, do sexo masculino, moradores de nossas periferias sociais, como noticia o Atlas da Violência 2018, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Ipea. De acordo com o mesmo relatório, apenas em 2016, foram 4.222 pessoas mortas em função de intervenções policiais.
Operações bélicas, como a que vitimou Marcos Vinícius e mais seis pessoas na Maré, além de contrárias aos princípios mais básicos do Estado de Direito, têm se demonstrado absolutamente incapazes de promover a pacificação da sociedade e a redução da criminalidade.
A democratização não trouxe consigo um novo sistema de segurança. Grande parte da responsabilidade pela segurança pública permaneceu com as polícias militares. Com o crescimento da violência e a perda do controle sobre a criminalidade em diversas unidades da federação, a União passou a recorrer de forma cada vez mais frequente às Forças Armadas.
Entre 2010 e 2017 as Forças Armadas foram acionadas 29 vezes para realizar operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), culminando com a decretação da intervenção federal no Rio de Janeiro, liderada por um general. Como já antecipava o comandante do Exército, em 2017, essas operações são inócuas.
Entre os múltiplos desafios que se colocam à sociedade brasileira nas próximas eleições está o de conter o forte processo de banalização do direito à vida —o que passa por uma profunda reforma do sistema de segurança, pautada na qualificação profissional, valorização, inteligência, tecnologia, controle e integridade das forças policiais.
Ampliar a militarização da segurança pública, como têm proposto muitos candidatos, é insistir numa receita fracassada. Fazer da Maré um novo Vietnã definitivamente não é a solução para a segurança pública no Brasil.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 23/06/2018