Strauss-Kahn é um símbolo. O FMI e muitos governos insistem em velhos erros e atentam contra o futuro
O affaire envolvendo o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn, numa suposta tentativa de assalto sexual a uma camareira de hotel em Nova York é revelador do momento particularmente delicado vivido pela instituição. Como numa novela, há situações em que os fatos convergem, ou parecem convergir, e em que o comportamento coletivo de instituições é também o espelho de atitudes individuais, especialmente dos protagonistas da história.
Impérios caem enquanto imperadores se refestelam; há um notório atrelamento entre a decadência da sociedade e a perda da perspectiva de suas lideranças. Os países ditos avançados vivem essa síndrome, denunciando a condição moral de seus líderes. Não deixa de ser sintomática a situação de Barack Obama. Passadas apenas duas semanas de posar como herói na caçada a seu quase homônimo, Osama, o presidente americano se apresenta ao noticiário com o semblante aturdido por chefiar uma nação cujo Congresso lhe nega elevar o limite do endividamento público federal, que sobe à casa dos US$ 14 trilhões, valor igual ao PIB!
A dívida americana chegou, de fato, a uma situação-limite – como alertamos há dois anos nesta coluna – não porque o Tesouro americano deixará de honrar seus papéis amanhã, mas por terem as autoridades deixado fraturar o fino cristal de sua intocada credibilidade financeira. A deterioração moral e comportamental dos mercados financeiros, bem narrada no filme documentário Inside Job, é um fenômeno pandêmico, que atinge hoje, inclusive e principalmente, os próprios responsáveis pela vigilância pública das economias nacionais e internacional. É nesse contexto mais amplo que o episódio do diretor do FMI se encaixa, e não como um isolado caso rumoroso de suposta agressão sexual.
O FMI foi totalmente incapaz de apontar a crise de 2008. Seus milhares de técnicos dormiam ao volante da economia mundial. Se algum analista do Fundo teve a percepção antecipada da derrocada financeira, sua voz foi emudecida pelos demais, assim como teve a mesma atitude o conjunto dos diretores do Fed, o banco central americano, sob o comando do “maestro” Alan Greenspan.
Incluo-me neste mea-culpa, antes que o leitor me ache tomado por alguma superioridade estéril. Cabe um exame de consciência coletivo de políticos, funcionários, economistas acadêmicos e práticos, comentaristas e articulistas, enfim, de todos que nos assumimos, na sociedade moderna, como formadores de opinião ou tomadores de decisões, num momento em que a economia mundial vem deslizando para um novo e terrível ajuste de contas.
Esse período doloroso é fruto dos falsos remédios aplicados por Greenspan, agora endossados por Strauss-Kahn e outros importantes notáveis do mundo das finanças. O porre de liquidez que inunda o mundo desde o início deste século, enlouquecido por euforias e medos, não é bom conselheiro para o final da novela do almejado reequilíbrio dos mercados.
É bom repetir: o FMI não enxergou o que vinha pela frente, bateu de frente com o desastre de 2008 e continua prescrevendo mal o que deve ser feito, exatamente por insistir no diagnóstico errado sobre os efeitos que o excesso de liquidez mundial ainda provocará. O economista-chefe do Fundo, Olivier Blanchard, um ex-crítico atento dos truques da economia monetária, não consegue mais distinguir erros de acertos na política fiscal de governos hiperendividados, que teimam em manter déficits públicos acima de 10% do PIB.
Mesmo que o próximo Strauss-Kahn não pule em cima de camareiras, o destino da riqueza mundial se arrisca a permanecer à deriva, se os homens que deveriam conduzir a economia de volta à normalidade não conseguem suportar a negação, a contrariedade e a espera, quando o desejo de ter e possuir lhes fala mais forte do que a razão, num impulso próprio das sociedades que consomem demais e pouco investem e poupam para o futuro.
Fonte: revista Época
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