Leitores e leitoras que comentaram a coluna da semana passada — “A gente é idiota” — dividiram-se em dois grandes grupos. Para o primeiro, o consumidor brasileiro, em especial o consumidor de remédios, não pode mesmo ficar inteiramente livre numa farmácia. Precisa ser “orientado”, “treinado”, “conscientizado” e “protegido” contra “tentações”, os produtos expostos nos balcões, sejam remédios ou chocolates.
Para o segundo grupo, é o contrário.
Quanto mais liberdade de escolha, quanto maior a possibilidade de comparação, mais o consumidor saberá encontrar o que precisa e deseja, no preço mais adequado.
O primeiro grupo, que incluiu muitos farmacêuticos, apoiou as novas regras da Anvisa, que proÍbem a venda, nas farmácias, de produtos não relacionados a medicamentos (chocolates, por exemplo) e também proíbem a exposição dos produtos isentos de receita nas gôndolas e prateleiras.
Os medicamentos ficarão atrás dos balcões e o consumidor terá de solicitá-los ao vendedor.
O segundo grupo, claro, considera essas regras uma enorme restrição à liberdade das pessoas.
De modo que há, aí, duas questões.
A primeira tem a ver a com a eficiência das regras da Anvisa, supondo-se que o consumidor precise mesmo de orientação e proteção. É duvidoso.
Um leitor observou, por exemplo, que um diabético, ao entrar numa farmácia que “vende de tudo”, poderá cair em tentação diante dos chocolates que estariam expostos ali. Pode, mas aí é outro problema: não é só o diabético que está o tempo todo exposto a tentações.
Todos estamos. A menos que se proíba toda propaganda, que se esconda todo tipo de comércio e que se proíba uma pessoa de sai por aí chupando um picolé de chocolate, não há como escapar dessas tentações.
Por outro lado, o fato de o consumidor precisar solicitar o medicamento a um funcionário da farmácia não limita o consumo desnecessário.
A começar por uma circunstância do negócio: o papel do funcionário da farmácia é vender, pelo que ele vai oferecer produtos ao cliente.
Alguns leitores, farmacêuticos à antiga, contaram que o que mais fazem é desestimular compras de medicamentos.
Este é um importante papel dos farmacêuticos, mas eles podem fazer isso com as regras atuais. Basta conversar com o cliente que chegue ao caixa com uma pilha de medicamentos.
A nova determinação vai apenas criar mais desconforto para o consumidor.
Ele agora vai pegar duas filas, uma para apanhar o produto, outra para pagar.
Outros leitores, defendendo o “o autêntico estabelecimento de saúde”, dizem que o Brasil devia seguir o modelo europeu, com as farmácias restritas a medicamentos, em vez das imensas drugstores americanas, “verdadeiros bazares”.
Ocorre, porém, que muitos países europeus estão liberalizando suas normas comerciais, na direção do modelo americano. Além disso, como disseram leitores residentes na Holanda e Alemanha, o paciente lá não precisa procurar o medicamento na farmácia, ele o encontra no posto de saúde pública, que funciona.
Aqui, não valeria a pena perder tempo para marcar uma consulta por conta de uma dor de cabeça. Melhor ir direto à farmácia. Claro que seria melhor receber rápido atendimento no médico do posto. Mas isso não sendo a realidade, não faz sentido tentar corrigir o problema restringindo o comércio nas farmácias.
Tudo considerado, há visões bem diferentes sobre uma questão bem mais ampla, cidadania e sociedade, liberdade e controles públicos. De um lado, está o pessoal que acredita ter a sabedoria e o bom senso para “orientar” e “proteger” o consumidor.
Ou seja, o cidadão, sem o controle do Estado, não sabe nem comprar um comprimido para dor de cabeça.
Daí em diante, a coisa só piora. Se os agentes do Estado sabem o que é melhor para o povo, já se viu onde isso vai parar.
Estaremos melhor do outro lado. É claro que caímos em tentação, cometemos enganos e não raro fazemos coisas ruins. Mas, uma pela outra, pessoal, a gente se alimenta, namora, vive, estuda, trabalha, gasta, poupa, cria filhos, vota e… compra remédios e chocolates.
Pode não ser o Estado perfeito, mas dá uma vida bem razoável.
(O Globo – 27/08/2009)
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