O ex-ministro José Dirceu nunca foi unaninimidade nem entre petistas. Condenado no mensalão, uma ala expressiva do PT defendia sua expulsão, como forma de resgatar a imagem do partido, manchada pela corrupção. Foi derrotada pela ala majoritária. Daí em diante, a relação do PT com a corrupção seria marcada pelos gritos de “Dirceu, guerreiro do povo brasileiro”.
Dirceu se tornou então o primeiro símbolo do que o PT considera “perseguição judicial” ao partido. Com a Operação Lava Jato, a ele se uniram vários outros, em especial o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas Dirceu sempre guardou uma espécie de lugar de honra nas fabulações petistas.
Foi condenado no mensalão. Condenado duas vezes pelo juiz Sérgio Moro, que ainda aceitou uma terceira denúncia contra ele. Sua primeira condenação foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que ainda aumentou em mais dez anos a pena imposta por Moro e o levou mais uma vez à prisão.
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Pouco importavam, para seus defensores, as provas eloquentes recolhidas contra Dirceu – entre elas, notas fiscais da empresa que mantinha em sociedade com o irmão, e o caminho cristalino do dinheiro da Petrobras até ela. Era, como Lula, considerado um preso político.
No vaivém de embargos e recursos, o VAR de habeas corpus que a Justiça brasileira sempre oferece àqueles que podem pagar advogados influentes, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), com base num relatório do ministros Dias Toffoli, libertou Dirceu uma semana atrás. Mais que isso, ontem Toffoli cassou a ordem de Moro que o obrigava a ser monitorado por meio de tornozeleira eletrônica.
A valer o entendimento em vigor no STF sobre o momento em que penas devem começar a ser cumpridas, Dirceu deveria estar preso. Mas Toffoli viu “plausibilidade jurídica nos argumentos defensivos a respeito da dosimetria da pena imposta”. Tradução: como maior de 70 anos, Dirceu deveria ter sido condenado a menos tempo de prisão. Sem que a defesa pedisse, decidiu então mandar soltá-lo até o exame da pena pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Quanto à ordem de Moro para o uso da tornozeleira, Toffoli a considerou “um claro descumprimento da decisão desta Suprema Corte e uma usurpação da competência da vara de execução penal do Distrito Federal”, já que, de acordo com ele, não caberia mais à vara de Curitiba “nenhuma esfera de juízo sobre o caso”.
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É possível entrar num interminável debate jurídico sobre ambas as decisões. É razoável exigir do STF uma regra clara sobre o momento em que os réus devem começar a cumprir as penas, de modo a deixar menos brechas abertas à ação de advogados oportunistas, a recorrer ao VAR dos habeas corpus dizendo que o pisão na canela do adversário foi sem querer. Também é razoável questionar a extensão dos poderes de Moro, ou mesmo o abuso de várias de suas decisões.
Nada disso, contudo, mudará os fatos. Dirceu deveria estar preso; Toffoli e a Segunda Turma querem mantê-lo solto. Não se trata de um réu qualquer, mas de um símbolo petista, um dos maiores troféus de Moro na Lava Jato. É um sinal evidente de como a reação à Lava Jato adquire contornos soturnos no Supremo.
A perspectiva para os próximos meses permite antever um cenário ainda mais favorável aos políticos que se tornaram réus ou condenados. Em setembro, Toffoli assumirá a presidência do STF. A ministra Cármen Lúcia assumirá o lugar dele na Segunda Turma.
Embora Cármen tenha adotado posições mais duras nos casos de corrupção, a maioria da turma ainda contará com três votos da ala “garantista”, que tem decidido quase invariavelmente em favor dos réus: Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.
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Em contrapartida, a ação de Toffoli na presidência poderá ir muito além do caso Dirceu. Com o controle da pauta do plenário, ele deverá pôr em votação as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) a respeito do momento em que as penas devem começar a ser executadas.
Será a decisão mais importante que o Supremo tomará para o combate à corrupção no Brasil. A perspectiva de prisão é o principal fator de coerção sobre os investigados. É o que os leva a colaborar com a Justiça. Dificilmente um entendimento mais leniente da lei penal teria resultado em tantos acordos de delação premiada, nem na revelação de toda a podridão na relação entre empresas e o Estado.
Mas a situação atual também não é estável. A libertação de Dirceu demonstra que os réus poderosos continuam a recorrer à exaustão ao VAR dos habeas corpus até obter uma brecha com um ministro mais simpático a seus argumentos. Determinar, de modo definitivo, a execução da pena depois da decisão da segunda instância fecharia várias dessas portas e traria mais estabilidade jurídica.
Não se sabe como votará a ministra Rosa Weber, o voto decisivo nessa questão – nem que tipo de solução esdrúxula o plenário poderá adotar. Mas, pelas decisões recentes de Toffoli, é evidente que a Lava Jato enfrentará dias mais e mais difíceis no Supremo.
Fonte: “G1”, 03/07/2018