Tolerância é uma das palavras prediletas dos adeptos do discurso “politicamente correto”. Termo de conteúdo forte e apelo humanitário, malgrado muito pouco compreendido em toda a sua complexidade, tem sido frequentemente utilizado como trampolim para os mais diversos e inconfessáveis objetivos.
De acordo com o Michaelis, tolerar significa “suportar com indulgência”, mas eu ainda prefiro a definição clássica que fala de “convívio com as diferenças”. É importante sublinhar que para haver tolerância é preciso, antes, divergir ou desgostar. Em outras palavras, essa virtude pressupõe uma discordância prévia, pois, caso contrário, não haveria porque tolerar.
Um outro aspecto importante é o da relação direta que existe entre tolerância e verdade. Quando esta é conhecida com alguma certeza, aquela deixa, necessariamente, de ser objeto. Já houve tempo, por exemplo, em que as pessoas precisaram ser extremamente tolerantes com as excêntricas (para a época) ideias astronômicas de Galileu. Nos dias de hoje, por outro lado, somente um louco ousaria discordar delas.
A virtude da tolerância está relacionada, basicamente, com a diversidade de opinião e de crença. John Locke, em sua famosa Carta Sobre a Tolerância dizia que “não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de tolerância para com os que têm opinião diversa, que deu origem à maioria das disputas e guerras que se tem manifestado no âmbito Cristão por causa da religião”. De fato, é no âmbito das religiões que costuma manifestar-se mais agudamente a intolerância, se bem que, mais recentemente, ela tem estado muito presente no campo das idéias políticas e econômicas.
O mais importante, entretanto, é que a tolerância só pode ter por objeto pessoas ou ideias, nunca ações ou atitudes. Tolerância frente a ações delituosas ou desrespeitosas transforma-se em cumplicidade, passividade ou acomodação.
Para Karl Popper a tolerância está associada à falibilidade, já que a atitude oposta, o dogmatismo ou a crença de que somos infalíveis, predispõe o ser humano à intolerância. Segundo o pensador austríaco, a disposição para conceder o benefício da dúvida no momento de defender nossas ideias, reconhecer que podemos estar equivocados e, sobretudo, reconhecer que o outro pode ter razão, ainda que inicialmente pensemos o contrário, é uma atitude de consequências inestimáveis para os assuntos humanos. Esta disposição supõe que façamos uma diferenciação importantíssima entre os argumentos sustentados por alguém e a pessoa que os sustenta. Isto implica que podemos atacar os argumentos, sem deixar, por isso, de respeitar a dignidade da pessoa que os profere.
Apesar de sua defesa intransigente da tolerância, Popper reconheceu que essa virtude também tem os seus limites, e assim definiu o que chamou de “paradoxo da tolerância: se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra os seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância”.
Estas considerações vieram-me à mente em função dos últimos acontecimentos políticos e, principalmente, devido às notícias de um suposto “acordão” que estaria sendo costurado entre partidos do governo e oposição. Eis uma estratégia muito perigosa para o futuro da nossa insipiente democracia e suas (ainda) frágeis instituições. É impossível, nesse instante delicado, esquecer a lição de Cícero, dois milênios atrás: “O hábito de tudo tolerar pode ser a causa de muitos erros e muitos perigos”.
Não pode haver tolerância para com a mentira, a corrupção, o engodo, a demagogia. Assim como não se deve prejulgar ninguém, não devemos tampouco deixar de ir às últimas consequências para descobrir a verdade e punir os responsáveis, mesmo que estejamos falando do presidente da república. Afastar das investigações quem quer que seja, em nome de uma pretensa governabilidade ou da imagem do congresso, nada teria a ver com tolerância, mas com mera cumplicidade.
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