“Muitos problemas não são resolvidos; eles são substituídos por outras preocupações.” (Thomas Sowell)
Vários intelectuais gostam de criar modelos utópicos desvinculados da complexidade do mundo real. Usa-se a expressão “torre de marfim” para designar esta postura, bastante comum nos comunistas. Infelizmente, isso não é monopólio da esquerda coletivista. Alguns libertários parecem viver justamente neste mesmo local confortável, onde dilemas éticos são freqüentemente ignorados em troca de uma visão bastante simplista das relações humanas e do conceito de justiça.
Para aqueles que vivem nesta torre, tudo parece mais simples. Ocorre uma espécie de monopólio dos fins, onde somente os adeptos de determinada seita defendem a liberdade e a paz. Os demais são todos inimigos, e não é preciso entrar em detalhes sobre os meios mais adequados para se preservar a tal liberdade e a paz. Este é o típico pensamento tribal, de “nós contra eles”, que não aceita concessões nem falhas. Como as religiões, estas ideologias respondem tudo, consolando contra as angústias inevitáveis de uma vida imperfeita. Normalmente, elas conquistam mais pelo regozijo que despertam em seus membros, pela sensação de superioridade moral, do que pelos resultados concretos que entregam. Devido ao excessivo idealismo, costumam conquistar os mais jovens, em busca de uma solução completa para os problemas do mundo.
Para estes libertários utópicos, o estado representa a fonte de todos os males e, portanto, a solução para nossos problemas está na dissolução do estado e na privatização de absolutamente tudo, incluindo leis e segurança. Trata-se de uma visão tentadora, mas, infelizmente, bastante ingênua em relação à natureza humana. Algo análogo aos herdeiros de Rousseau, que viam na propriedade privada a fonte de todos os males, partindo da premissa tola de que antes éramos “bons selvagens”.
Colocar a culpa de todos os males no estado, como se ele fosse algo totalmente à parte da sociedade, significa ignorar que são sempre seres humanos que agem, e todo estado, especialmente aqueles sob democracias, dependem do aval da maioria para sobreviver. Quando Jesus é crucificado e Barrabás é libertado, não é o estado romano que comete tal injustiça apenas, mas sim o próprio povo, cuja pressão levou a esta decisão. Para efeitos retóricos, separar os indivíduos em duas classes – exploradores e explorados – faz sentido, como Marx sabia; mas, na prática, dificilmente será fácil alocar indivíduos de forma tão maniqueísta. A maioria está em algum lugar no meio do caminho, pagando pesados impostos, mas também consumindo muitos bens públicos. O estado tampouco é algo monolítico, uma entidade estanque com um mesmo grupo de gente no comando. Ele sofre a influência de inúmeros grupos de interesse, além da opinião popular. Os libertários devem lembrar que Ron Paul, por exemplo, faz parte do estado americano.
A própria idéia de que existe uma solução para os conflitos humanos é demasiadamente otimista. Como diz Thomas Sowell na frase da epígrafe, a maioria dos problemas é apenas substituída por outros, talvez menores. O que existe no mundo real são trocas (trade-offs), alternativas imperfeitas, onde cedemos algo para preservar outra coisa mais valiosa. Viver em sociedade tem inúmeros benefícios, mas eles cobram seu custo. Imaginar um modelo de sociedade onde há somente trocas voluntárias o tempo todo entre os indivíduos, sendo o homem o que é, parece um belo sonho, porém, irrealista. Como Freud escreveu em O Mal-Estar na Cultura, “as duas aspirações, a de felicidade individual e a de integração humana, têm de lutar entre si em cada indivíduo; é assim que os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de se hostilizar mutuamente e disputar o terreno um do outro”.
Uma característica comum aos utópicos é uma ilimitada crença na razão humana. Com base em um princípio, como o da não-iniciação de agressão, todo um sistema de sociedade justa é definido. Se ao menos fosse tão fácil assim! Séculos e mais séculos de intensos debates filosóficos, os mais sábios dos sábios discordando entre si, apresentando visões distintas sobre justiça, e eis que tudo isso está resolvido: basta aplicar sempre o princípio absoluto de não-iniciação de agressão! Infindáveis casos vêm à mente para testar a praticidade deste valor absoluto no mundo real, demonstrando que abaixo da torre de marfim a situação é sempre mais complicada. Como um exemplo, podemos pensar qual seria a reação justa, legítima, de uma sociedade sob o ataque de invasores. Qualquer reação em forma de guerra, uma guerra justa para a maioria, levaria inevitavelmente à morte de inocentes de ambos os lados. Mas como alguém fanaticamente apegado ao princípio absoluto em questão poderia aceitar tal conseqüência? A partir do momento em que vidas inocentes serão claramente perdidas, a reação se torna ilegítima por este prisma: haveria o início de agressão a quem não iniciou agressão alguma. Como reagir então à ameaça nazista de Hitler? O resultado prático deste “pacifismo” seria, no mundo real, o triunfo da barbárie sobre os inocentes. Como diz David Friedman, “se não estamos dispostos a impor custos sobre os outros para defender a nós mesmos, então há uma política externa libertária – a desistência”.
A razão humana é uma ferramenta fantástica, a mais poderosa que temos. Mas ela é limitada, e seu próprio uso serve para reconhecermos humildemente isto. Somos seres falíveis. Por isso tenho tanta desconfiança de qualquer “sistema fechado”, que julga ter encontrado todas as respostas para as complexas relações entre seres humanos. Como disse Robert Winston em Instinto Humano, “é a nossa capacidade de combinar instinto, emoção e razão que nos possibilita feitos impressionantes”. Sabemos que o que falta num psicopata não é lógica nem coerência, mas outra coisa, como a capacidade de empatia. A lógica é crucial para os humanos, mas não é tudo!
Basta pensar nos mais cabeludos tabus, como o incesto ou a pedofilia. Não há nada lógico que diga que relações incestuosas devem ser proibidas com base no princípio de não-iniciação de agressão. Cachorros não ligam para o incesto! Entretanto, acredito que a imensa maioria das pessoas não aceitaria viver numa sociedade em que pais e filhas casassem à vontade. A pedofilia é ainda mais complicada, pois como definir a idade em que indivíduos podem começar a praticar trocas voluntárias? Um homem que oferece um sorvete para uma menina em troca de sexo oral está praticando uma troca voluntária, mas qualquer um com um mínimo de bom senso iria repudiar esta transação e defender sua proibição legal. Com qual idade o princípio absoluto, já não tão absoluto assim, começa a valer? Há como evitar alguma arbitrariedade aqui?
Acredito que o maior receio dos libertários utópicos seja abrir brechas em seu sistema fechado, e entendo o medo. Inimigos da liberdade individual vão tentar usar estas brechas para criar um rombo nos pilares que sustentam o liberalismo. “Se não é possível saber tudo, então não sabemos nada!”, dirão os mais pérfidos. Mas, em nome da honestidade intelectual, creio que devemos correr este risco, e mostrar que há sim bastante conhecimento objetivo – o que não é sinônimo de certeza absoluta. Como disse um velho judeu da Galícia, “quem quer que diga que está 100% certo é um fanático, um criminoso e o pior tipo de crápula”. A postura mais humilde me parece mais inteligente do ponto de vista utilitarista também, pois acho que brechas ainda maiores na doutrina liberal são abertas atacando a postura dogmática e muitas vezes até bizarra de alguns libertários. Certas bandeiras mais radicais fazem eu questionar se estes revolucionários não são os hippies da “direita”.
Mas quais são então as soluções para os dilemas éticos mais complexos? O monopólio das leis nas mãos do estado garante mais eficiência e justiça que um livre mercado de agências privadas concorrendo em busca do lucro para fornecer leis e segurança? Se o leitor acompanhou atentamente o texto até aqui, já compreendeu que eu não tenho a menor pretensão de saber a resposta. Sei apenas que encaro com profunda desconfiança qualquer um que afirma saber, e que ainda por cima considera tudo muito simples. Utilizo uma vez mais as palavras de Freud para concluir: “Assim, perco o ânimo de me fazer de profeta entre os meus semelhantes, e me curvo à censura que me fazem de que não sei trazer nenhum consolo – pois é isso que todos pedem no fundo, os mais selvagens revolucionários não menos apaixonadamente do que os mais bem-comportados beatos”.
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