O crânio humano mais antigo das Américas, o maior meteorito já encontrado no Brasil, a maior coleção latino-americana de múmias, relíquias de civilizações extintas do continente, fósseis de dinossauros, ao todo 20 milhões de itens nas áreas de paleontologia, etnologia, arqueologia, botânica, zoologia e demais ciências.
Tudo reunido num palácio que abrigou momentos decisivos do Brasil imperial, num parque histórico, cartão-postal da mais bela cidade do país. Foi-se a ciência, foi-se a história, foi-se um pedaço de cada um de nós, consumido pelas chamas que destruíram ontem o Museu Nacional no Rio, o mais antigo do país, com 200 anos feitos em junho.
Nada do que foi perdido poderá ser substituído. Não há dinheiro capaz de repôr o prejuízo. Não se trata de perda meramente material, mas de conhecimento imaterial. O palácio repleto de tesouros consumido pelas chamas é um retrato simultâneo da nossa riqueza cultural e de nosso desprezo por ela, do desdém pelo que temos de melhor.
Leia mais:
Museu Nacional: mais uma vítima da falta de prioridades
Vítor Wilher: “Se hoje museus estão caindo aos pedaços, prepara-se: vai piorar”
Imil promove hangout “Precisamos falar sobre gasto público”
Era um museu no sentido mais amplo da palavra. Não apenas um espaço de exposição. Não um polo de comunicação com recursos digitais para atrair turistas. Mais que instalações dedicadas à educação, era um repositório de coleções, um centro de pesquisas. Menos sexy, mas mais valioso. Um museu clássico, como os congêneres de história natural ou etnografia em Londres, Paris ou Nova York.
Que valor o Brasil lhe dava? Basta ver o Orçamento dedicado à manutenção nos últimos anos: R$ 531 mil em 2013; R$ 427 mil em 2014; R$ 257 mil em 2015; R$ 415 mil em 2016; R$ 346 mil em 2017; R$ 54 mil até junho de 2018. Pouco mais de R$ 2 milhões em cinco anos e meio.
Uma única joia – o par de brincos de turmalina paraíba, cravejado de diamantes –, entre as 460 compradas com dinheiro público pela ex-primeira dama Adriana Ancelmo, custou R$ 612 mil, mais que o Orçamento anual do museu em cada um dos últimos seis anos. Ao todo, ela comprou R$ 5,7 milhões em aneis, colares, alianças, pulseiras, pingentes, cordões e brincos.
O BNDES anunciou, nas celebrações pelo bicentenário, que destinaria R$ 21,7 milhões, ou 76% do valor estimado para restaurar as instalações do Museu Nacional. É um valor que empalidece diante dos R$ 385 milhões desviados nos esquemas do ex-governador fluminense Sérgio Cabral.
Ou diante dos quase R$ 12 bilhões descobertos nas investigações da Operação Lava Jato. Ou ainda diante dos 13,8 bilhões destinados a emendas parlamentares no Orçamento de 2019. Que deputado destina sua verba à cultura, cujos recursos sofreram corte de R$ 128 milhões?
Só o rombo da Previdência em 2017, sem contar estados e municípios, foi de R$ 269 bilhões no ano passado – ou R$ 512 mil a cada minuto. Bastaria conter pouco mais de um minuto do déficit previdenciário para recuperar o Orçamento do Museu Nacional em 2013. Em quatro minutos, o Brasil queima na Previdência tudo o que destinou aos tesouros consumidos pelas chamas nos últimos cinco anos e meio.
Não se pode, portanto, alegar falta de dinheiro ou, de modo oportunista, atribuir a responsabilidade ao teto de gastos. Os valores envolvidos na preservação do patrimônio são ínfimos diante do que o país destina a outras áreas. É questão de estabelecer prioridades e saber recorrer a recursos privados quando necessário. É para isso que servem dispositivos legais como a Lei Rouanet.
Não muito longe da Quinta da Boa Vista, lá mesmo no Rio de Janeiro, o acervo da Biblioteca Nacional está em situação precária. O país tem 3.788 instituições cadastradas na base do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). O Museu Nacional era o primeiro e o mais importante. Não o único. É preciso cuidar dos outros antes que seja tarde demais.
Fonte: “G1”, 03/09/2018