A proposta de Orçamento da União, enviada com déficit ao Congresso Nacional, é, na verdade, uma afronta aos cidadãos deste país, que pagam altos impostos e contribuições e gostariam, com toda a razão, que o governo exercesse as suas responsabilidades. Manifestamente, o Estado brasileiro, tal como concebido pelo atual governo, não cabe dentro de sua economia.
Um cidadão comum deve, responsavelmente, fazer a conta de suas receitas e despesas, da mesma forma que qualquer empresa. Trata-se de um princípio básico da economia que vale — ou deveria valer —, para uma entidade pública que vive de recursos alheios, sociais. A proposta da presidente Dilma eximiu-se desta responsabilidade básica e procurou transferi-la ao Congresso, o que só fez agudizar a crise política e abalar ainda mais a sua credibilidade.
Um dos argumentos utilizados é o de que a atual proposta orçamentária prima pelo realismo e pela transparência. Como assim? A proposta orçamentária de 2014 e a sua execução teriam sido, então, obras de ficção? Como pode o mesmo governo defender a transparência neste ano e não na proposta do ano anterior? A lógica dependeria de uma mera conveniência política?
Isto significa que a proposta orçamentária de 2014 não se caracterizava pela transparência e teria obedecido a meros objetivos eleitorais, como se os recursos dos contribuintes pudessem ser utilizados arbitrariamente, ao sabor dos ventos.
Não deveria, portanto, surpreender que o TCU esteja se debruçando com tanto rigor sobre essas contas, pois, se houve irregularidades, os seus autores devem ser responsabilizados. A presidente Dilma encontra-se diante de um problema concreto de não aprovação de suas contas, com as consequências daí derivadas.
Para evitar qualquer tipo de mal-entendido, frisemos que tal questão não pode ser traduzida politicamente como um acerto eleitoral, tipo terceiro turno. Trata-se, tão somente, de um princípio republicano que demanda a sua correta aplicação. A transparência deve ser aqui o critério.
Não se pode politizar a transparência, sob pena de cairmos na autocracia e em governos que mascaram contas. Os cidadãos têm todo o direito de saberem qual é o destino de seus impostos e contribuições. É a própria democracia que está em questão.
O governo defronta-se, agora, com o julgamento das pedaladas fiscais e do não contingenciamento de despesas que deveria ter sido feito. Para se ter uma ideia do montante envolvido, haveria um total de R$ 104 bilhões de reais, cuja utilização deveria ser esclarecida.
O discurso eleitoral do ano passado apresentou uma realidade inexistente enquanto a existente foi simplesmente mascarada. Não deveria, portanto, espantar que as crises econômica e política tenham alcançado essa dimensão.
Pedaladas fiscais configuram operações de crédito disfarçadas, proibidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Houve, portanto, o adiamento de pagamentos do Executivo mediante a utilização de bancos públicos.
O objetivo do governo consistiu em ocultar um déficit fiscal, já naquele momento presente. E para isto não hesitou em infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Logo, não tem o menor sentido o discurso da presidente de que, apenas agora, teria visto o alcance dos problemas enfrentados pelo país.
No caso de o governo ter deixado de fazer o contingenciamento de despesas, ele não seguiu o que estipula a lei, em uma clara transgressão, algo que fez, aliás, em anos anteriores. Se deixou de fazer, é porque a sua razão era política — as eleições — e não a obediência aos princípios republicanos.
Sabendo, por exemplo, que a arrecadação seria menor do que o esperado, além de não contingenciar recursos da ordem de R$ 28,5 bilhões, liberou R$ 10,1 bilhões sem autorização do Congresso mediante decreto presidencial. A legalidade não foi seguida. Prejudicou sobremaneira a governança pública, ocultou os dados e desprezou o princípio público da transparência. Estamos diante de uma esculhambação voluntária das contas públicas.
Neste sentido, o relatório do ministro João Augusto Nardes é da maior importância por reafirmar um princípio de discussão republicana das contas públicas. Se o governo se sente acuado, é porque não soube exercer a responsabilidade que lhe incumbiria. O relator concedeu amplo direito de defesa ao Executivo para que esclareça as decisões tomadas. A questão é técnica, republicana, e não partidária. Querer partidarizar essa discussão significa privatizar a República.
[su_quote]A corrupção nasce do descontrole e da falta de transparência na utilização dos recursos públicos[/su_quote]
Procurar denegrir o trabalho do TCU significa um imenso desserviço à nação. A governança pública tornou-se uma das principais diretrizes da atuação deste tribunal, preocupado igualmente em verificar a legalidade e a conformidade dos atos dos gestores públicos.
Com tal fim, houve uma remodelação de sua estrutura administrativa, tendo como orientação uma maior coordenação e especialização de suas unidades técnicas. O seu corpo de funcionários é altamente capacitado. Trata-se da exigência mesma de um país moderno, atento ao uso de seus recursos.
A corrupção nasce do descontrole e da falta de transparência na utilização dos recursos públicos. Se os atos dos gestores não forem fiscalizados, o desvio de recursos e vários tipos de crime serão a sua consequência. Se o país vive, hoje, uma crise em que a corrupção explodiu, por assim dizer, é porque foi escondida e, segundo alguns, justificada por um bem social/partidário maior.
Note-se que, tão logo a Justiça Federal no Paraná disponibilizou as informações relativas à Operação Lava-Jato, o então presidente da Corte, ministro Nardes, determinou pela instauração de um grupo de trabalho para analisar toda a documentação. Houve, assim, uma coordenação entre instituições republicanas, em um claro indício do amadurecimento institucional de nosso país, em que pese todas as forças políticas que se insurgem contra essa nova institucionalidade.
O futuro do país disto depende!
Fonte: O Globo, 7/9/2015
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