O sistema de Justiça começa a ser discutido com mais profundidade. Entre vários temas, a ampliação da clientela da Justiça Penal e o tratamento sistêmico da criminalidade.
Um dos principais pontos de partida dessa experiência foi o velho Fórum Criminal da Justiça Federal de São Paulo, inaugurado há 30 anos na Praça da República, no centro histórico de São Paulo. Seis juízes federais criminais tinham jurisdição sobre todo o Estado paulista.
Nossa geração chegou ao Fórum Federal Criminal – na condição de juízes substitutos – com a Constituição de 1988 nas mãos. Para aplicar o que ela tem de mais autêntico: o regime de liberdades públicas.
Naquela época, boa parte das investigações estava centrada no sujeito do crime. E não havia visão organizada sobre a criminalidade. Foi uma surpresa constatar que nenhuma das apurações fragmentadas sobre os endêmicos assaltos violentos contava com prisão preventiva ou preferência nos julgamentos.
O sacoleiro era o grande cliente da Justiça Federal. Os depósitos de distribuição de mercadorias ilegais que operavam à luz do dia não despertavam curiosidade investigativa. De vez em quando, uma batida na famosa Galeria Pajé. A Receita Federal era obrigada a custear galpões e recursos humanos para manter os bens apreendidos à disposição da Justiça. Muita “repressão-formiga”, muitos processos insignificantes. Congestionamento das poucas Varas Federais Criminais. Os julgamentos eternizavam-se. Quando terminavam, a prescrição já havia feito o seu trabalho. As mercadorias depreciadas iam a leilão público, mas já não valiam nada. Era excelente negócio para quem organizava o crime: o sacoleiro-funcionário ficava impune e os produtos apreendidos não concorriam no mercado. A União gastava muito para manter o livre-comércio do crime.
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Convencido pela doutrina estrangeira, comecei a aplicar o princípio da insignificância: como a fraude tributária era pequena no “contrabando-formiga”, a extinção das investigações contra sacoleiros liberava os bens ainda úteis para a União ressarcir-se do prejuízo nos leilões e concorrer com o comércio ilícito.
Os países desenvolvidos já seguiam outros caminhos. Em 1993 os procuradores italianos da Divisão Antimáfia vieram ao Brasil propor delação premiada para suposto dirigente da organização criminosa. Para presidir a audiência recebi a documentação de uma das maiores investigações transnacionais da história, a Operação Pizza Connection. Os governos da Itália, dos Estados Unidos e da Suíça empenharam todos os meios contra a Cosa Nostra, cuja fortuna preocupava o Fundo Monetário Internacional.
Era o começo de nova era investigativa em todo o mundo – eletrônica, cooperativa, de interação de polícias e serviços de inteligência, transnacional. A diferença com o Brasil era abissal. Foram 20 anos até o Supremo Tribunal Federal acolher a tese da insignificância no popular “contrabando”.
Nesse meio tempo, a Lei dos Crimes de Colarinho Branco, de 1986, veio para mudar a clientela da Justiça federal. Com o mesmo propósito, a Lei 8.137, de 1990, ao definir os crimes contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo. O fato também se produziu nos crimes contra a administração pública. Os pequenos funcionários foram sucedidos por altos dirigentes administrativos e políticos.
A novidade do Juizado de Pequenas Causas Criminais garantiu racionalidade à gestão. Não fazia sentido julgar com idênticas formalidades o empresário, o traficante internacional e o carteiro que se apropriava de revistas sensuais.
Novas leis alcançaram as organizações criminosas, recrudesceram as penas e o regime de seu cumprimento nos crimes mais violentos. Ao mesmo tempo, foram introduzidos mecanismos consensuais de apuração do crime, como a delação premiada.
Magistrados, passamos a ser confrontados por outro dilema. As nações socialmente desequilibradas são afetadas pela impunidade, mas também por outro excesso, o moralismo penal de conveniência e oportunidade, dois lados negativos da moeda do atraso.
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Se a falta de moderação e de estratégia na repressão ao “contrabando” prejudica a indústria e o comércio, o desequilíbrio na aplicação da lei penal sobre o mercado financeiro e a gestão político-administrativa pode ter consequências tão ou mais desastrosas.
Nesse período, a tecnologia ajudou a transformar o crime em negócio de alto risco. Quando o Estado precisa reconstituir os fatos no processo penal, tem à disposição o arsenal de recursos tecnológicos dominante de toda atividade humana.
Nestes 30 anos parece ter ficado claro que a “indústria do crime” não pode ser eficazmente reprimida por meio do protagonismo rentável e artificial de poucos. Não são escolhas de alguns, mas de maioria: ao lado dos magistrados e das leis penais, votadas no Parlamento, é preciso ter a rua iluminada, a moradia decente servida de água e saneamento, a criança na escola, a saúde funcional. Sem o conjunto de fatores comunitários positivos a evolução social será sempre lenta.
Fonte: “G1”, 30/9/2020
Foto: Reprodução