Lá atrás, em 1840, Alexis de Tocqueville apontou a fina linha que separa a democracia da tirania e alertou para o risco de que as massas caíssem sob o hipnotismo de um demagogo populista. O 9/11, Dia de Trump, prova que a “velha toupeira” está viva – e fazendo das suas.
A “velha toupeira”, “nosso Robin Hood”, aparece num discurso de Karl Marx, em 1856, na festa dos cartistas londrinos. É a classe trabalhadora, “que sabe tão bem trabalhar no subsolo para emergir subitamente: a Revolução”.
Trump derrubou a muralha democrata nos Apalaches e no Meio-Oeste, bastiões da classe trabalhadora industrial americana. O seu triunfo deveu-se à sedução exercida pelo nacionalismo populista sobre eleitores desencantados de Obama e Bernie Sanders.
“O homem e a mulher esquecidos não serão esquecidos novamente”, tuitou Trump na manhã de 9/11, convocando das profundezas de 1932 uma imagem de Franklin Roosevelt.
“Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos por uma África do Sul Branca.” No início do século 20, essa divisa, decalcada do Manifesto Comunista, orientou a “revolta vermelha”, um movimento grevista selvagem dos operários brancos das minas sul-africanas que exigiam o fim da contratação de mineiros negros. A toupeira sapeca fura túneis inesperados. O “Brexit” não seria aprovado sem os votos das regiões industriais deprimidas de Midlands, antiga fortaleza eleitoral do Partido Trabalhista. Nos EUA, agora, como no Reino Unido, meses atrás, o “homem esquecido” segue o demagogo nativista que clama contra o “estrangeiro” – isto é, o imigrante mexicano ou o exportador chinês.
O voto dos desiludidos
Uma chaga purulenta infecta a globalização. Hoje, nos EUA, os 1% mais ricos concentram 21% da renda total, perto dos 24% de 1929 e mais que o dobro dos 9% de 1975. A renda média dos 40% mais pobres caiu 8% em relação a 2006. A recuperação econômica significou estagnação ou retrocesso para muitos.
A tóxica mensagem do “trumpismo” foi ouvida pelos deserdados da globalização e da inovação tecnológica. Uma massa silenciosa de perdedores falou pelo voto, apertando os dedos nas teclas do racismo, da xenofobia, da aversão ao Islã e, sobretudo, da vingança contra a “elite globalista”. Ohio, Iowa, Pensilvânia, Michigan, Wisconsin são as Midlands dos EUA. “America First” é a divisa da nova “revolta vermelha”.
“Nada está escrito na pedra”, rejubilou-se Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional (FN), candidata que lidera as sondagens para a eleição presidencial francesa de abril. Ela congratulou Trump, uma alma irmã, dizendo que o 9/11 abre caminho para dissolver o poder da “elite política e midiática”.
O “brexit” antecipou o Dia de Trump, que anuncia o triunfo da FN, explicou, encaixando os eventos numa sequência inteligível. O “grande movimento que percorre o mundo”, na expressão de Le Pen, é um extenso túnel da velha toupeira. Sobreponha dois mapas: no norte e no leste da França, anéis industriais em desintegração, o eleitorado da extrema-direita coincide com as antigas casamatas eleitorais do Partido Comunista Francês.
“Movimento” é a palavra. Trump escolheu-a num curtíssimo, improvisado discurso de vitória, para evocar seu desprezo pelos partidos. “O mundo deles entra em colapso; o nosso está em construção”, comemorou Florian Philippot, chefe estrategista de Le Pen.
Mas quem são “eles”, cujo mundo desaba? “Eles” são os políticos de centro-esquerda e centro-direita, os empresários das novas tecnologias, os financistas sem fronteiras, os profissionais qualificados –mas, também, os imigrantes, os refugiados, os muçulmanos, os judeus, as pessoas de cor ou religião diferente. “Make America Great Again”: o “movimento” dirige-se contra o cosmopolitismo e quer restaurar as certezas antigas, reconstruir uma imaginária idade de ouro.
A toupeira é cheia de truques. Dela, Marx não sabia nem a metade.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 12 de novembro de 2016.
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