Nos jornais e em ensaios acadêmicos, difunde-se a tese de que o “Estado profundo” enquadrou Donald Trump, neutralizando seus impulsos autoritários e assimilando-o ao sistema político americano. A ordem executiva de declaração de “emergência nacional”, supostamente destinada à construção do muro na fronteira com o México, evidencia as dimensões do equívoco. Por meio dela, o presidente circunda o Congresso, apropriando-se de prerrogativas constitucionais que não pertencem ao Executivo. O precedente busca destruir o mecanismo de contrapesos que garante o funcionamento normal da democracia americana.
Trump já corroeu a ordem internacional edificada pelos EUA no pós-guerra. A aliança transatlântica, corporificada pela Otan, cambaleia sob os golpes do ocupante da Casa Branca, que prefere a companhia da Rússia à da Europa. O sistema multilateral experimenta incontrolável hemorragia depois de sucessivas retiradas americanas (Acordo do Clima, acordo nuclear com o Irã, mudança da embaixada para Jerusalém, guerra tarifária com a China). No Oriente Médio, o isolacionismo trumpiano propiciou a expansão da influência russa e ameaça deflagrar uma corrida nuclear entre Arábia Saudita e Irã. Entretanto, a ordem democrática interna parecia preservada — até a edição da ordem executiva de 15 de fevereiro.
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“Eu não precisava fazer isso”, respondeu Trump diante da indagação de um repórter. O ato falho diz tudo. O presidente qualificou o fluxo de migrantes na fronteira sul como “emergência nacional” por motivos exclusivamente político-partidários. Dois anos após a posse, a promessa nativista de construção do célebre muro dissolve-se no ar rarefeito das bravatas, especialmente após a reconquista de maioria na Câmara pelos democratas. Como explicou Gavin Newsom, governador da Califórnia, um presidente “constrangido” inventa uma falsa emergência para “alimentar sua base” com a ração da xenofobia. Nesse percurso, procura libertar o Executivo da rede de controles fabricada pelo sistema democrático.
Não há emergência imigratória. Graças à drástica redução do fluxo de mexicanos, a imigração nos EUA conhece forte redução depois do apogeu de 1995-2000. Nos dois anos iniciais do governo Trump, as detenções de migrantes na fronteira sul atingiram seu nível mais baixo desde 1971. Atualmente, na sua maioria, os imigrantes ilegais entram nos EUA com vistos válidos que deixam expirar. A ordem executiva desvia para as obras do muro US$ 8 bilhões, uma fração dos custos totais da obra, estimados em US$ 23 bilhões. Imigrantes e muro não passam de pretextos para uma encenação teatral xenófoba. Contudo, se a Corte Suprema avalizar a farsa, ficará virtualmente anulado o poder do Congresso de definir o Orçamento nacional.
Do russo Putin ao turco Erdogan, passando pelo húngaro Orbán, os governantes populistas do movimento neonacionalista avançam rumo ao autoritarismo pela subordinação dos parlamentos e dos tribunais ao arbítrio do Executivo. Nos EUA, uma nação de enraizadas instituições democráticas, o empreendimento é muito mais difícil. Trump não conseguiu barrar as investigações judiciais que se aproximam de seu clã familiar. O desafio que agora lança ao equilíbrio de poderes definirá o futuro de seu governo.
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A Lei de Emergências Nacionais, de 1976, inscreve-se no percurso histórico de ampliação das prerrogativas presidenciais que começou com a ratificação da Constituição americana, em 1788. A lei de 1976 não define o conceito de “emergência nacional”. O Congresso pode revogar emergências, mas o presidente tem o direito de vetar o ato parlamentar. A derrubada de vetos exige maioria qualificada de dois terços na Câmara e no Senado. Nessas condições, Trump tem chances razoáveis de obter da Corte Suprema uma sentença na qual os juízes se abstêm de intervir em prerrogativas dos outros poderes.
Geralmente, ao produzirem suas leis, as democracias não preveem a ascensão ao Executivo de líderes populistas engajados na degradação da própria democracia. Essa é a verdadeira “emergência” que os EUA enfrentam hoje.
Fonte: “O Globo”, 25/02/2019