“O erro da maioria dos analistas foi ouvir Donald Trump literalmente, mas não seriamente. O correto seria ouvi-lo seriamente, mas não literalmente.”
Essa foi a melhor definição que ouvi sobre o novo presidente dos EUA. Neste primeiro mês desde a posse de Trump, o que não faltou foram simbologias e movimentos que podem mudar seriamente o mundo tal qual o conhecemos. Mas ainda é cedo para saber se o que foi anunciado vai acontecer, literalmente.
Trump ainda não percebeu que a fase dos discursos de campanha já passou e que mudanças profundas exigem habilidades que vão muito além do universo controlado por um bom presidente-executivo de empresas. É preciso um líder que saiba administrar o processo político, no país e no exterior, tarefa nada fácil.
O eixo central das mudanças propostas por Trump são os EUA abandonando a posição de guardiões da ordem liberal do planeta. Alguns dizem que estamos assistindo ao começo do colapso do multilateralismo da ONU, da OMC, do Banco Mundial e do FMI. Ou do regionalismo da Otan, da OCDE, do Nafta, da União Europeia e das Parcerias Transatlântico e Transpacífico. Em outras palavras, o desmonte das instituições que dominaram o mundo desde a Segunda Guerra Mundial.
Não há dúvida de que caminhamos para um mundo bem mais fragmentado e protecionista, marcado por barganhas pautadas unicamente pelo interesse individual. Nesse mundo, tudo pode mudar: comércio, investimentos, segurança, combate ao terrorismo, mitigação das mudanças do clima.
No Brasil, a grande questão do momento é saber se o país será beneficiado ou prejudicado pelas medidas anunciadas por Trump.
Numa visão imediatista, não resta dúvida de que algumas medidas podem até beneficiar o Brasil:
– A saída da Parceria Transpacífico (TPP), bloco que geraria grande desvio de comércio e investimentos em favor dos EUA. De fato, a TPP foi concebida para ser o maior bloco econômico do planeta, e nós estávamos de fora.
– A possibilidade de maior proteção dos EUA contra países como China e México. No agronegócio, por exemplo, o México importa grandes volumes de milho e carnes dos EUA. O Brasil poderia substituir os EUA como fornecedor desses produtos.
– A China é o principal parceiro do Brasil e dos EUA no agronegócio. Uma escalada protecionista entre os dois países poderia beneficiar as exportações do Brasil para a China.
– As restrições à migração e o combate aos trabalhadores ilegais tendem a encarecer o custo de produção nos EUA, principalmente nas atividades intensivas em mão de obra.
No entanto, outras medidas anunciadas por Trump podem prejudicar o Brasil. Um exemplo é o ciclo de investimentos em infraestrutura que os EUA querem lançar, que vai competir pela atração de capitais externos para esse setor no Brasil.
Temos, sobretudo, de olhar com atenção para as ameaças de longo prazo. Se o neoprotecionismo simbolizado pelo “America First” (leia-se: o mercado americano para os americanos) for intenso e generalizado, ele pode gerar uma espiral viciosa de retaliações e compensações em escala global. Um ambiente de extremo mercantilismo, que já se repetiu várias vezes no passado, de Roma ao sistema feudal, das grandes navegações ao entreguerras dos anos 1930.
Nesse contexto, viveríamos uma nova fase de “toma lá da cá” altamente politizada, com efeito devastador sobre a estrutura das cadeias globais de valor. Usando uma analogia simples: numa briga de elefantes — tipo EUA vs. China — marcada por toda sorte de retaliações e compensações, quem acaba apanhando é a grama, no caso o Brasil.
Por isso, a principal questão não é saber se vamos ganhar ou perder nesse novo ambiente. É preciso, sim, ampliar as relações de interdependência com países que possam nos ajudar a escapar dessa velha e caótica tempestade, hoje rebatizada de “desglobalização”, que nada mais é que um novo nome para populismo, xenofobia e protecionismo.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 18 de fevereiro de 2017.
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