De vez em quando a inflação preocupa, disse muito singelamente o ministro Guido Mantega, num aparente surto de veracidade. Disse bem: de vez em quando. Se fosse uma preocupação mais constante, a inflação estaria muito mais próxima da meta, ou, melhor ainda, a meta seria muito mais baixa e mais parecida com a de países governados mais seriamente. Estaria na faixa de uns 2% a 3%. Mas surtos como esse são raros. O governo continua brincando com os preços, mas o ministro fala durante a maior parte do tempo como se estivesse em outro mundo, num exercício parecido com o duplipensar ou com o uso da novilíngua, Não se combate inflação com o câmbio, disse Mantega, enquanto o Banco Central (BC) jogava dólares no mercado e derrubava a cotação para pouco menos de R$ 2,00. Só os juros e outros instrumentos típicos da política monetária servem para conter a alta de preços, garantiu o ministro, em Brasília, discursando para prefeitos. O prefeito paulistano, Fernando Haddad, confirmava a decisão de manter as tarifas de ônibus até junho, para atenuar o impacto do aumento dos combustíveis. Durante anos, o governo freou os preços da gasolina e do diesel para limitar a inflação e assim prejudicou a Petrobrás. Agora depende de prefeitos e governadores para limitar o efeito de um ajuste atrasado e insuficiente. Mas algum incômodo será causado ao consumidor, porque “acabou a Cide”, a contribuição cobrada sobre os combustíveis, admitiu o ministro, Não dá mais – esse o recado ministerial – para compensar com a redução da Cide o encarecimento da gasolina e do diesel. Mas desde quando esse tributo faz parte do arsenal da política monetária?
Ao mesmo tempo, o BC mantém a taxa básica de juros em 7,25%. Afinal, essa é a decisão da presidente da República, embora os instrumentos monetários, segundo o ministro da Fazenda, sejam os únicos adequados – ou os mais apropriados – para o combate à inflação. Poderia também ter mencionado a moderação fiscal, mas quanto a isso ele se mostra muito tranquilo. A política fiscal brasileira, garantiu, é das mais transparentes do mundo, tudo sai no Diário Oficial, e o uso do Fundo Soberano para o reforço das contas foi perfeitamente legítimo. Transparente, nesse caso, é parte da novilíngua. Escrachada e escandalosa seriam palavras mais adequadas para qualificar a maquiagem, denunciada até por gente habituada a apoiar esse governo.
Quanto ao Fundo Soberano, é uma evidente ficção: de onde vêm seus recursos, se as contas públicas nominais são normalmente deficitárias? Fundos dignos desse nome são constituídos com excedentes, em geral acumulados em períodos de prosperidade. O ministro descreve a ação do governo como política contracíclica. Nada mais falso. Políticas desse tipo – atenção à partícula “contra” – consistem basicamente em formar reservas nas boas fases para gastar em tempos difíceis. Na área fiscal, nunca foi seguido esse tipo de estratégia. A ação do governo brasileiro tem sido consistentemente procíclica – farra fiscal quando a receita cresce mais do que o produto interno bruto (PIB) e incentivos quando a economia fraqueja e a arrecadação é afetada.
O ministro continua atribuindo à crise global o fracasso econômico do Brasil no ano passado. Mas o mercado externo deve melhorar e isso favorecerá o País. A explicação combina muito mal com os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os últimos dados sobre o comércio varejista são de novembro, mas servem muito bem para uma avaliação do ano. Nos 12 meses até novembro, o volume de vendas do varejo ampliado, isto é, com inclusão de veículos, componentes e material de construção, foi 8% maior que nos 12 meses anteriores. O volume vendido pelo varejo restrito foi 8,6% superior ao do período encerrado em novembro de 2011.
Essas vendas foram possibilitadas pelos níveis de ocupação e de renda, pelo volume de crédito e pelos cortes de impostos sobre bens de consumo. Em dezembro, o desemprego nas seis áreas metropolitanas cobertas pela pesquisa do IBGE ficou em 4,6%, a menor taxa mensal desde março de 2002, início da série, A média anual, 5,5%, também foi a menor. De janeiro a dezembro, a média da massa de rendimento real habitual foi 6,2% maior que a de 2011.
Ao contrário do observado nos países mais afetados pela crise, o emprego manteve-se alto e o consumo cresceu. As condições de emprego foram favoráveis, em parte, por causa das contratações no setor de serviços, mas em parte, também, pela estratégia dos empresários industriais. Eles preferiram evitar o custo das demissões e as dificuldades para recompor os quadros em caso de reativação. Afinal, falta mão de obra adequada às necessidades da indústria. Parte da força de trabalho disponível nem mesmo atende às condições mínimas para treinamento nas fábricas – uma das consequências do erro na escolha das prioridades, nos últimos dez anos.
Apesar do consumo elevado, a produção industrial em 2012 foi 2,7% inferior à de 2011, segundo o IBGE. A fabricação de bens de consumo diminuiu 1%, porque parte da demanda foi suprida por importações (o baixo poder de competição da indústria brasileira é bem conhecido). Mas o pior resultado foi, de longe, o do setor de bens de capital, isto é, de máquinas e equipamentos para reposição, ampliação e modernização da capacidade produtiva. A produção desses bens encolheu 11,8%.
O total do investimento – público e privado – ainda é desconhecido, mas o número final deve ser muito ruim. O governo precisará de muito mais que a conversa habitual para garantir o crescimento. Detalhe relevante: se continuar descuidando da inflação, nem o poder de compra das famílias vai durar. Mas o ministro Mantega dá sinais de pensar sobre isso: se for preciso, a taxa básica de juros, a Selic, poderá subir, sem provocar uma “sangria desatada” (expressão dele). Será uma autorização para o BC fazer o seu trabalho?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 02/01/2013
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