O Afeto que se Encerra é um antigo livro de Paulo Francis. Não há como não fazer uma associação com esse título quando nos debruçamos sobre o sentimento que perpassa tantos brasileiros no meio dessa polarização tóxica que está afetando a sua relação com o País em que vivem. O que muitas pessoas têm colocado entre nós nos últimos anos é uma pergunta tão angustiante quanto existencial: o que fazer quando o sentimento de pertencimento a uma nação se dá em relação a algo que não existe mais?
Dizia-me recentemente um velho amigo, numa conversa sobre estas questões: “Eu sinto que, nos últimos anos, os vínculos afetivos que me uniam ao Brasil foram se diluindo”.
“Onde se nasce é um acidente”, dizia Mario Vargas Llosa. E adicionava: “A verdadeira pátria é aquela que a gente escolhe com a alma”.
Refazendo a pergunta anterior: o que fazer quando nossa alma entra em conflito com o lugar que habita? Como se estabelece esse divórcio? Ou ainda: o que fazer para que ele não ocorra?
Como evitar a sangria de algumas de nossas melhores cabeças, que, cansadas da polarização que está estragando o Brasil, desistem do País, com o qual não mais se identificam? Ubi bene ibi patria (onde se está bem, aí é a pátria), pregava Cícero, o filósofo romano. O que fazer com todos os que estão virando “apátridas afetivos”, mesmo (ainda) morando no Brasil, muitos apenas por falta de alternativa?
“Alma nacional” é uma expressão-chave. Jorge Luis Borges escreveu que “a amizade é feita dessa língua comum, dessas palavras e lembranças compartilhadas, referências. É isso que faz uma pátria”.
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“Pátria”, eis o termo fundamental, ainda que talvez um pouco ultrapassado pelos fatos da vida moderna, que torna as coisas mais parecidas entre si. Uma loja da Gucci no Brasil se assemelha muito a uma que pode haver perto dos Champs Elysées, em Paris. O cappuccino da Starbucks de São Paulo tem o mesmo sabor que o dessa loja em Londres. Parte da nossa juventude das classes mais favorecidas e que fez intercâmbio se vira no Rio de Janeiro, em Madri ou em Sidney. Não há como quem viajou muito não se sentir um pouco cidadão do mundo.
E mesmo assim o ser humano se pergunta: “Com que lugar eu me identifico? A quem me sinto ligado? Por que destino eu me preocupo? Em qual causa eu me engajo?”. O leitor sente-se muito afetado quando lê notícias sobre assassinatos no Iraque ou mais um ataque terrorista no Afeganistão? Provavelmente, não. O noticiário chega aqui como se fossem coisas que acontecem em outro planeta. Todos sabem que, de alguma forma, todos moramos no “condomínio Terra”, mas ele tem muitos prédios…
Chegamos, então, à questão-chave. O filósofo Ortega y Gasset nos ensinou que “uma nação é um projeto de vida em comum”. E em seu livro Espanha Invertebrada, escrito no começo dos anos 20 do século passado, ele se queixava de que não haveria uma vértebra que permitisse aos espanhóis serem unificados por um ideal comum, que levasse cada cidadão a sair da contemplação para uma atitude ativa, em favor da construção do futuro. Nesse contexto, como alguém já resenhou opinando sobre o livro dele, cada parcela da sociedade passa a existir como um grupo à parte do resto. Ortega estava se referindo ao que hoje denominaríamos de “tribos”. A nação, porém, na concepção de Ortega, vai muito além da simples convivência no mesmo espaço geográfico e se refere a um conjunto de pessoas em que há laços de identificação e solidariedade que levam cada um a contar com o outro.
É algo que se foi perdendo no Brasil nos últimos anos. Somos um país de uma desigualdade que choca qualquer estrangeiro que nos visita, com uma divisão de classes que lembra sociedades estratificadas e com níveis de pobreza que contrastam com a riqueza de muitos lugares. Entretanto, tínhamos características em comum. Que na luta política fratricida dos últimos anos se foram perdendo. É isso que está levando tanta gente (tantos eleitores!) a se perguntar: “O que me une ainda a este lugar e seus habitantes?”. A percepção de que há cada vez menos itens nessa lista talvez seja um dos fenômenos recentes mais importantes. Vale para todas as classes. É um sentimento que, em alguns casos, exacerbado, pode levar ao egoísmo e à indiferença.
Virou moda a menção à frase de J. Carville, o famoso “marqueteiro” de Clinton, “It’s the economy, stupid”, dando a ideia de que é a situação da economia que comanda o voto do eleitor em qualquer eleição. A economia é um elemento poderoso na hora de o cidadão decidir quem vai eleger. E o Brasil precisa, desesperadamente, deixar para trás a crise, o desemprego elevado e a piora do nível de vida. Há também, contudo, no País elevada demanda por unificação, para deixar para trás esta “era da infâmia” do atual século, de divisão de amizades e famílias. Quem tiver essa leitura estará em boa posição para o futuro, diante de uma população cada vez mais cansada do País em que vivemos. Antes que o afeto pelo Brasil acabe de vez.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 4/3/2020