A forte relação entre zoonoses, sanidade animal e segurança do alimento será um dos principais temas a serem revistos no mundo pós-pandemia. Zoonoses são doenças causadas por vírus e outros patógenos que contaminam animais, podendo ou não “pular” entre espécies e infectar seres humanos. Exemplos recentes são influenzas, HIV, Ebola, Sars e Mers. O coronavírus é só mais um que atinge humanos. E não será o último.
As primeiras pessoas infectadas pelo coronavírus frequentaram o mesmo mercado de produtos frescos e perecíveis em Wuhan, na China. Trata-se de um típico wet market ou “mercado molhado”, nome que se origina do uso frequente de água ou gelo para conservar produtos perecíveis, além da lavagem do recinto com água para escoar sangue e resíduos.
A maioria dos wet markets não dispõe de refrigeração adequada, daí o nome “molhado”, em vez de resfriado ou congelado, formas que conservam melhor o produto. Mais da metade da venda de alimentos frescos (frutas, verduras, carnes e pescados) nos países em desenvolvimento é feita em mercados desse tipo, onde o controle sanitário costuma ser bastante frouxo.
Muitos deles também oferecem animais domésticos vivos para abate, que ficam presos em gaiolas ou pequenos espaços e são abatidos, eviscerados e cortados no próprio mercado, de acordo com a demanda do cliente.
Não raro tais mercados têm ainda uma seção de “animais silvestres e exóticos” que oferta alguns tipos de roedores, macacos, tatus, tartarugas, sapos, morcegos e cobras, vendidos no mesmo modelo dos animais domésticos. Vale lembrar que mais de 800 milhões de pessoas se alimentam de animais silvestres, principalmente na Ásia e na África, a maioria por razões nutricionais e via autoconsumo, sem aglomerações.
O problema que estamos tratando é a existência de criação ou caça comercial de animais silvestres, que acabam sendo vendidos nos mercados molhados, elevando o risco de transmissão de zoonoses. Em outras palavras, uma parcela dos wet markets oferta animais domésticos e silvestres (vivos ou convertidos em carnes e subprodutos) no mesmo espaço sujo e comprimido em que circulam centenas de pessoas todos os dias. No período que trabalhei na Ásia visitei vários desses mercados de padrão século 19 (ou antes), encaixados em megacidades, ao lado de prédios moderníssimos de padrão século 21. A sensação era a de andar dentro de uma “bomba biológica” de alta periculosidade. Mas nunca imaginei que ela poderia ser tão avassaladora.
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Acontece que as cadeias produtivas de alimentos são muito heterogêneas no mundo, seja na propriedade rural, no processamento, na distribuição ou no varejo. Empresas multinacionais que seguem os melhores padrões sanitários globais convivem no mercado com espeluncas que abatem e evisceram animais na frente do consumidor, sem nenhuma fiscalização. Dois pesos e duas medidas na aplicação de leis sanitárias. Régua alta para alguns, baixa para outros.
A solução para esse problema, que está na raiz da epidemia, é o controle sanitário rígido dos wet markets, incluindo coibir a caça comercial ilegal de animais silvestres, além da aplicação efetiva de legislações sanitárias e punição exemplar dos abusos. Mas há outros fatores de mudança, em que o Brasil tem vasta experiência e muito a ensinar. São eles: 1) a criação e manutenção de cadeias frias desde o abate dos animais até a preparação final da comida; e 2) o modelo de “integração vertical” produtor-processador vigente nas cadeias de aves e suínos – indústrias alimentares e cooperativas oferecem animais para engorda, rações, vacinas, medicamentos e assistência técnica plena a seus produtores integrados, melhorando a sanidade e a segurança do alimento.
O Brasil também tem desafios internos a serem vencidos em sanidade animal, tais como a aplicação uniforme da legislação em todo o território nacional e o controle sanitário efetivo das nossas fronteiras. Mas não há a menor dúvida de que estamos muito à frente da grande maioria dos países, particularmente do mundo em desenvolvimento. Não seríamos líderes globais na exportação de carnes bovina, avícola e suína para mais de 150 países se não tivéssemos um sistema sanitário de padrão global, que pode e deve ser melhorado após esta pandemia.
Acredito que o Brasil deveria assumir posição protagônica nos debates sobre sanidade humana e segurança do alimento que certamente vão ser realizados na OMS, na FAO, no G-20 e na Organização Internacional de Epizootias (OIE).
A queda do Muro de Berlim, em 1989, marcou a reorganização política do mundo, com o fim da guerra fria. Em setembro de 2001, o atentado às torres gêmeas de Nova York marcou a reorganização da segurança internacional, com a conscientização sobre os riscos do terrorismo global. O coronavírus marcará a reorganização da sanidade humana, que descobriu sua inimaginável fragilidade ante a globalização.
Alguns acharão que isso representará uma crise para o agronegócio. Eu prefiro ver como uma oportunidade de valorização e aprimoramento do nosso papel no mundo agroalimentar.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 24/4/2020