O Brasil de Lula é uma espécie de país pré-datado.
Bom para 2014 (Copa), 2016 (Rio) e pré-sal (2020)”, disse a Ricardo Noblat, do GLOBO, o cientista louco Hugo-A-GogoGo. Só faltou explicitar a eleição do seu sucessor em 2010. Eis um país programado e previsto.
A pré-datação inquieta. Eu cresci num Brasil do “ao Deus dará”. Uma sociedade errada, inferior e, por ser misturada, perdedora. Enquanto os “países adiantados” adiantavam-se, porque tinham agendas, o Brasil, na trilha do mundo socialista, não saía do lugar porque imitava os “planos quinquenais” que magicamente resolveriam todos os problemas. O pré-datado difere do “plano totalizador”.
Num caso, estamos no terreno das agendas que obrigam a discernir as tarefas de cada dia; no outro, equacionamos de uma vez por todas o porvir. Alheio às agendas, e certo de que o futuro a Deus pertencia, eu achava arrogante prédatar o mundo como se fazia com as notas provisórias.
Essa aversão a agendas tinha muito a ver com o destino de meus avós, Raul e Emerentina. Ela, sobrevivente de um casamento liquidado pelo assassinato do marido numa sorveteria de Manaus; ele, pela doença que lhe levou a mulher jovem. Viúvos com filhos, eles somaram seus rebentos a um amor capaz não só de produzir novos filhos, mas um casamento entre o filho de Raul e a filha de Emerentina, meus pais. Deles não se viu jamais sinal de revolta ou sofrimento, mas cresci sabendo como foram duramente marcados pela perda de muitos filhos.
Enterraram filhos em Manaus, em Salvador e em Niterói; velaram recém-nascidos, meninos, jovens, “homens feitos” e minha velha avó, solitária e conformada, como testemunhei no verde dos meus 20 anos, ainda levou ao cemitério um filho entrado numa velhice de angústia e desesperança. A vida não lhes deu sucesso ou riqueza, mas as miudezas das quais tão bem tratou Machado de Assis. Essas coisinhas ditas e feitas pela metade, um tanto afogadas pelo silêncio das convenções. Mas foi deles a recorrente experiência de ver a terra cobrir o caixão dos filhos e de viver a chaga aberta com a qual lidaram até a sua partida deste vale de lágrimas, pobres, idosos e íntegros, plenos de aceitação pela parcela que — fazer o quê, leitores queridos — lhes coube neste mundo.
Meu avô Raul encolheu-se no silêncio, acompanhado de um charuto Suerdieck, fumado com serenidade depois dos grandes almoços de domingo.
Dele foi também uma impecável polidez, que no rosto bem talhado figurava, no máximo, sorrisos.
Como o filosofo Kant, ele um dia chorou porque — impedido pelo derrame cerebral que lhe tolheu as pernas — não pode levantar-se para a despedida apropriada a tia Celeste, viúva do seu filho mais querido, Roberval, levado pelo lúpus na força da idade. Já Emerentina, falante, alegre e dominadora, optou pelo lado arriscado e venturoso da vida. Era uma apaixonada pelo jogo com o seu rude inesperado e o seu mágico imprevisto.
Estou certo de que, para ela, a vida não era somente marcada por surpresas mas era, em si mesma, a própria surpresa. Tirando a “arte”, e a irremovível divisão entre vida & morte, só há o transitório da metamorfose, da transformação e do descentramento. Daí, quem sabe, o apego de Emerentina pela “missa das seis” e a sua paixão paradoxal pelo pôquer e pelo jogo do bicho que praticava não para ganhar, mas para contrariar e confirmar a incerteza que marcou sua vida.
Acertar um palpite é pré-datar um evento e ter a ilusão, própria das sociedades modernas, de controlar o futuro. De saber o que é bom para o Rio e para o Brasil. Dizem que foram os franceses que presentearam o mundo com essas inovações. Foram seguidos em vão por uma pá de imitadores que logo descobriram o preço a pagar pelas fronteiras, pelas leis da história e pelas coletividades homogêneas. O século passado fornece um belo testemunho da barbárie, motivada — como diz Lévi-Strauss — pelos crentes na civilização.
Entramos na fase de um Brasil pré-datado. Alguns prefeririam a agenda de liquidar a desigualdade por meio de um sistema educacional impecável tão complicado de fazer quanto uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. Ademais, vale lembrar, há sempre — como ocorreu na semana passada — a droga do inesperado.
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