Estou no exterior usando um carro alugado. Acabo de sair de quatro horas de estrada com a descoberta casual de um brinquedo novo. Na verdade, é uma prazerosa aplicação de tecnologia com inteligência artificial.
Conheço bem o piloto automático que mantém a velocidade do carro constante até que os freios sejam acionados. Essa função permite que descansemos o pé que aciona o acelerador durante trechos longos.
Descobri que o piloto automático embarcado neste carro, no entanto, é muito mais “inteligente”. Remeteu-me de imediato à Terceira Lei de Clarke, elaborada pelo famoso escritor de ficção científica britânico: “Uma tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
Ao entrar na estrada, acionei o piloto automático. Após alguns minutos, o carro reduziu a velocidade para manter a distância do veículo à frente, mais lento. Quando a pista voltou a ficar livre, retomou a velocidade programada. Bacana! Mas funcionará bem nas caóticas estradas do Brasil?
A próxima surpresa: o carro automaticamente alterava a velocidade para se adequar aos limites de velocidade de cada trecho. O interessante é que os sinais indicando velocidade reduzida para caminhões ou para veículos nas faixas locais de saída foram corretamente desconsiderados. Não houve falha alguma de leitura.
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Adicionalmente, percebi que o carro “sentia” quando outro veículo estava prestes a entrar na minha faixa e reduzia suavemente a velocidade como precaução.
Mais à frente, chegando a um curto perímetro urbano, o carro reduziu a velocidade e parou completamente em um sinal de trânsito vermelho, sem meu auxílio! O retorno ao movimento e à retomada da velocidade-limite exigiram apenas um leve toque no acelerador. Nessa altura, concluí que essa tecnologia me impactou mais do que quando utilizei o aplicativo Shazam pela primeira vez, que, como que por mágica, identificou uma canção em um barulhento bar.
Um pouco mais adiante, ao desviar levemente dentro da minha própria faixa de circulação, senti uma trepidação do volante, como nos videogames. O asfalto era perfeito e a linha de separação das faixas não foi tocada, portanto só poderia ser uma sinalização de que o carro estava saindo do centro da faixa!
Repeti o leve desvio como um teste. Havia não só a trepidação mas também uma leve resistência a seguir desviando. Incrível! “Até onde vai essa função?”, pensei. Soltei as mãos do volante em um trecho de curva. O carro completou as duas próximas curvas sozinho! Depois de alguns segundos sem tocar no volante, soou um “pi”, e uma mensagem no painel instruía a voltar a atenção para a estrada.
Enquanto dirigia, ainda perplexo, imaginava que essa função deve evitar muitos acidentes, em especial aqueles nos quais o motorista se distrai ou dorme ao volante.
Me lembrei das 30 mil mortes por ano no trânsito do Brasil, do nosso protecionismo que torna carros importados duas a três vezes mais caros, das pegadinhas da indústria da multa.
Um acidente com o carro autônomo da Uber em 2018 matou uma senhora que atravessava de bicicleta. Em tese, a análise de imagens deveria ter identificado o objeto como uma bicicleta, mas a programação não previa indivíduos atravessando fora da faixa de pedestres. Teria meu carro alugado freado bruscamente se uma caixa de papelão cruzasse voando à minha frente? A maioria dos acidentes com os carros autônomos em teste têm sido batidas por trás após freadas bruscas.
Discutirei alguns problemas da inteligência artificial em uma coluna futura. Mas estou impressionado com a experiência sem falhas que fortuitamente tive.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 8/1/2020