Os brasileiros deveriam exigir a renúncia coletiva do Congresso Nacional; todos que votaram a favor do aumento do fundo eleitoral para R$ 5,7 bilhões traíram o compromisso democrático de bem representar os cidadãos. E não venham com desculpas esfarrapadas, tratando-nos como tolos ou idiotas. O fato é objetivo: quem votou pelo referido aumento insidioso estava plenamente ciente do que estava a fazer; e, se alguém votou sem saber, a patética ignorância não é causa excludente da imoralidade praticada, mas agravante da inaptidão parlamentar.
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Chega. Não dá mais. Passamos – há muito – do limite do aceitável. Sem cortinas, o abuso e a impunidade estão matando a República. A decadência institucional brasileira atinge níveis jamais vistos, estampando a face de uma classe política estúpida, arredia aos imperativos da decência e abertamente despreocupada com o bem do Brasil. Essa incontrolável desfaçatez política acaba por gerar um trágico sentimento de estafa cívica: o cidadão, desesperançado e recorrentemente traído em suas expectativas de futuro, passa a duvidar das próprias possibilidades da democracia. Não por acaso, os extremismos e os discursos de ruptura passam a ter eco ressonante na praça pública, na vã ilusão de que o imediatismo passageiro da força pode mais que a perenidade da razão.
Ora, o artigo 1.º da Constituição Federal externa, em alto e bom som, que “todo poder emana do povo”. A beleza plástica da lei está completamente dissociada da realidade pulsante. Infelizmente, temos um Congresso Nacional divorciado da sociedade brasileira, criando leis despidas de interesse público em flagrante exercício inconstitucional da função legiferante. Aliás, caso fosse uma mera questão de inconstitucionalidade, o fenômeno, embora indesejável, seria um risco inerente da dinâmica do poder. Todavia, quando a ilegalidade se soma à má-fé, o traço doloso ganha os tons de indecoroso, viabilizando, em tese, disparar o gatilho da extinção do mandato parlamentar como previsto no artigo 55, II, da Carta Magna.
O caráter antidemocrático de determinadas opções parlamentares não traduz hipótese meramente teórica; embora não sejam copiosos, há precedentes judiciais sobre a deletéria prática política. Ilustrativamente, ao analisar, em 2015, lamentável escambo envolvendo certas medidas provisórias, a suprema corte apontou, com rigor, que “tem sido chamado de contrabando legislativo, caracterizado pela introdução de matéria estranha à medida provisória submetida à conversão, não denota, a meu juízo, mera inobservância de formalidade, e sim procedimento marcadamente antidemocrático, na medida em que, intencionalmente ou não, subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprios ao rito ordinário dos trabalhos legislativos a discussão sobre as normas que irão regular a vida em sociedade”. Enfim, um Congresso capaz de praticar “contrabando legislativo” não é nem pode ser modelar à nação.
Em tempo, cumpre destacar que o financiamento público de campanha tem genética autoritária. Especificamente, o Fundo Partidário foi criado pela Lei 4740/1965 (artigo 60), servindo, à época, para financiar aquela farsa do bipartidarismo forçado entre Arena e MDB. Com a redemocratização, a lógica aconselhava – em homenagem à paridade de armas do jogo político – a rejeição de todo e qualquer fundo público, seja ele partidário ou eleitoral. No entanto, os partidos e seus caciques imperiais são entidades moral e programaticamente falidas, tributando o suado dinheiro do povo para financiar sua escancarada incompetência institucional.
E assim vamos nós, com uma política cara, corrupta e ostensivamente antidemocrática. O tempo passa e ganância partidária só aumenta. Enquanto isso, o cidadão de bem, na agonia da desesperança, depois de tantos sonhos despedaçados pela mentira e má-fé do poder, mira ao céu, buscando, perdido, respostas para um Brasil que parece estar perpetuamente condenado à indignidade política. Triste, mas real. Até quando, então, viveremos nesse suplício cívico?
Fonte: “Gazeta do Povo”, 28/07/2021
Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado