No mundo das formigas, a vida segue a lógica do comportamento coletivo e previsível. A vontade individual de cada formiga é nula. Nas coletividades humanas, entretanto, as decisões individuais definem e condicionam o rumo da coletividade. A vontade de cada um pode alterar a ordem constituída, fazendo-a melhor ou levando-a ao desastre. O novo Programa Nacional de Direitos Humanos, como foi sancionado, parece tentar constituir no Brasil uma comunidade de formigas.
Meio sem saber, o presidente Lula ali reuniu tudo o que há de bom e justo pelo olhar de hoje, todos os melhores comportamentos esperados, desde a boa memória política até a conservação do ambiente. Trata-se de uma lista de casamento entre a bondade e a virtude, baixada por um decreto, de número 7.037, de 21 de dezembro. Mas a iniciativa esquece um detalhe fundamental: que somos apenas seres humanos, normalmente degradados ou degradadores, irreverentes, audazes, insolentes, quando não somente malucos. Não pertencemos ao mundo perfeito do PNDH.
Homens não são formigas e, por essa razão fundamental, podemos prognosticar um destino não muito próspero para o generoso decreto. Com a assinatura da norma jurídica que contém apenas uma página de comando legal – a constituição de um Comitê de Acompanhamento e Monitoramento – e outras 90 páginas de mundo perfeito, postas em anexo, nas quais se responsabiliza o próprio governo por entregar o bem e a justiça em todo o território nacional e a qualquer momento, perdeu-se o exercício da humildade em face da grandeza de nossas limitações humanas. Em sua doce presunção de alcance de metas inalcançáveis, o decreto do PNDH é profundamente antieconômico e, por assim dizer, “desumano”, por não pertencer a este mundo. É o instinto de sobrevivência dos humanos que nos condiciona a calibrar esforços com resultados, mesmo quando nos propomos a “fazer o bem”. O mundo perfeito tem um custo impossível.
O processo de melhorar de verdade o mundo imperfeito dos humanos consiste em graduar o que é de fato alcançável e avançar sempre, sem perder o rumo nem a esperança no futuro. Ao assombrar uma agricultura de alta produção e tecnologia, um verdadeiro “pré-sal” verde que fecha anualmente as contas externas do país com saldo em dólares superior a 40 bilhões, espicaçando-a com a ameaça de invasões de terra não remediáveis com os recursos da Justiça Comum, aquele decreto esnoba quem põe comida na mesa do brasileiro. E quando ronca um rugido de vingança sobre o pescoço das Forças Armadas, que, mal ou bem, são o esteio final da ordem e da Constituição vigentes, o infeliz decreto também inverte as polaridades de um cálculo banal de custo-benefício, supostamente em nome de pôr sobre a mesa “a verdade”, num típico raciocínio de formiga aplicado à terrível, mas natural desordem humana. Erra, sobretudo, quando pretende apressar a roda da fortuna pessoal, prometendo taxar os desigual e escandalosamente mais ricos, no intuito de igualar a todos no formigueiro: infelizmente, não é por aí que se consegue melhorar a vida de cada integrante da coletividade. O caminho, por mais paradoxal que possa parecer, deve aproveitar a duvidosa inclinação humana à busca do enriquecimento, em um ambiente em que o indivíduo seja livre para lutar e pelejar pelo que é ou será seu.
Os direitos humanos plenos são o degrau mais alto de uma escada íngreme. Não há como chegar ao topo sem passar pelos primeiros degraus, formados pela lista fundamental dos direitos mais básicos, à vida e à liberdade. Nos degraus da metade da escada, tais proteções mínimas evoluem para os direitos civis, no momento compreendidos e exercidos apenas por uma parcela minoritária dessa miserável humanidade. Cuidado maior devemos ter ao pretender atingir os degraus superiores, os dos direitos humanos plenos. Ao final do dia, as contas de esforço e resultado têm de fechar, almoço grátis continua não existindo e a comida precisa estar no prato de cada brasileiro.
(Publicado em “Época”)
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