Um artigo difícil de escrever. No barco para Galinhos, constatei que deixei os óculos de leitura no carro, que ficou para trás, no estacionamento.
Minha tarefa era ler o voto de quatro horas de Toffoli, diante de péssimas referências. Um ministro disse que o voto tinha sido redigido em javanês. Ler mais de 300 páginas em javanês, sem óculos, depois de um duro dia de trabalho, é superior às minhas forças. Se os ministros não estavam entendendo, o melhor seria esperar o resultado final.
Pelos fragmentos dos votos e pela tendência geral, suponho que cairá a proibição ao Coaf — atual Unidade de Inteligência Financeira — de trocar informações com os órgãos de investigação e que voltará a correr inquérito sobre Flávio Bolsonaro.
Numa visão mais ampla, posso intuir que houve um recuo. Toffoli disse que havia lendas urbanas em torno do caso. Uma delas era a de que 935 processos foram paralisados. Mas a informação partiu do Ministério Público. Da mesma forma, ele não se deteve no caso Flávio Bolsonaro. Mas foi a partir dele que proibiu as investigações sem autorização judicial.
O principal é que haja um recuo. Há muitas formas de recuar, nem muito depressa para parecer que está com medo, nem muito devagar para parecer provocação. A forma que Tofolli usou é a de complicar ao máximo, para que não se entenda perfeitamente sua trajetória.
Fragmentos da sessão de quinta já indicavam que eram muitas as perguntas dos próprios ministros e que dificilmente passará a ideia de restringir a troca de informações à prévia autorização judicial.
Esse período ainda inacabado foi aberto pela grande ofensiva da Lava-Jato contra a corrupção, provocando um terremoto político em escala continental. Um dos personagens, a Odebrecht, é até citada no filme americano “A lavanderia”.
Depois das eleições, veio a contraofensiva cujos marcos foram as revelações do site The Intercept e,em seguida, a derrubada da prisão em segunda instância. O Supremo atua como modulador dessa contraofensiva mas parece que, desta vez, Toffoli avançou demais, por contra própria. De um lado, é indefensável paralisar ou inibir investigações baseadas em atividades financeiras.
Na decisão de Toffoli não apenas a Lava-Jato foi atacada, mas um princípio basilar da luta contra a corrupção expressa na expressão americana follow the money . É um princípio seguido internacionalmente. Daí a reação de alguns representantes da OCDE, algo que Tofolli nega mas os registros da imprensa confirmam.
Não deixa de ser curioso reclamar de lendas urbanas nas circunstâncias em que Toffoli reclama. Tanto sua atuação no caso Flávio Bolsonaro como a inibição do Coaf são fatos sobre a mesa.
Se realmente quisesse transparência, Toffoli poderia mobilizar grande equipe de jornalistas que trabalha no Supremo. Dizem que é maior que o elenco de uma empresa de televisão. O que houve para não atuarem?
Talvez fosse difícil explicar claramente o que ia na cabeça de Toffoli, assim como ficou difícil entender o enredo para os próprios ministros.
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O ideal teria sido uma transparência maior, inclusive sobre os próprios interesses no caso. Tanto a mulher de Toffoli como a de Gilmar tinham suas atividades financeiras sob exame.
De fato, em ambos os casos, o vazamento de algo que ainda estava sob exame configura irresponsabilidade com a privacidade das pessoas.
A partir daí é possível um entendimento sobre erros que não podem acontecer. Mas a reação foi muito mais longe: esterilizar os laços entre autoridades financeiras e policiais.
E como se não bastasse isso, a interrupção do processo de Flávio Bolsonaro bombardeou os fundamentos de algo que parecia consenso com a passagem da Lava-Jato: a lei vale para todos.
E por acréscimo mostrou também uma realidade inconveniente: o governo que se elegeu com o tema de combate à corrupção e de apoio à Lava-Jato também torpedeava o princípio basilar de que a lei vale para todos.
Não sei quantos milhares de páginas vão escrever, quantas horas vão gastar nos seus votos. Sei apenas que na semana que entra tudo poderá ficar mais claro. Com os óculos de leitura e a opinião dos outros ministros, posso entender melhor como o STF vai desenrolar esse bizantino enredo.
Fonte: “O Globo”, 24/11/2019