Dissimular é uma arte da política, particularmente praticada nos ciclos eleitorais. Em se tratando do Brasil, convenhamos, essa aptidão é desenvolvida com naturalidade, eis que a expressão da verdade não assume status de extremo rigor quanto se observa em países de cultura anglo-saxônica. Sob essa premissa, não causam comoção manifestações, atos, atitudes e abordagens feitas na atual quadra, também conhecida como pré-campanha eleitoral.
O exercício em torno da transmutação de imagem, a cargo dos atores, aponta para algumas direções: montagem de discurso cauteloso, apresentação de propostas consensuais, distância de polêmicas e humanização do perfil. Nessa tarefa, os protagonistas tentam driblar as rotas de condutas históricas e incorporar novos comportamentos e posições, impedindo que os circunstantes os considerem tal como são ou deixando transparecer argumentos para se pensar que não são o que efetivamente são. Até conseguem o intento, mas não raro a prestidigitação faz o conhecido princípio da geometria “duas paralelas no plano se encontram no infinito” arrumar como ponto de encontro a esquina eleitoral mais próxima. Pois o paralelismo que se julga existir entre candidatos nada mais é que uma encruzilhada, onde a visão de um se cruza com o ponto de vista de outro. Mesmo que o passado seja o traço de união.
O objetivo dos participantes da peça é, como no teatro chinês, apor uma máscara sobre a cara para representar galhardamente o espetáculo e ganhar palmas entusiasmadas da plateia. Bom desempenho dá aplausos e tropeços geram apupos. Cada qual, atores centrais e secundários, tem papel definido. Vejamos o desempenho de alguns, a começar pelo presidente da República.
Em entrevista ao jornal El País, Lula confessa ser um cidadão “multi-ideológico”. O termo, que em tempos idos poderia soar como atentado ao pudor de um PT monolítico e sacralizado, foi usado para abrigar a pluralidade que torna semelhantes entes políticos neste ciclo de desideologização. Luiz Inácio não quer mais parecer o radical de outrora, sentimento apontado por outra palavra – multinacional – que apensou ao desabafo, como se fosse sinônimo. Ora, graças à multinacionalidade e às ideologias múltiplas que agregou ao perfil, tornou-se palatável aos olhos de líderes mundiais, enquanto por aqui passou a ser visto como ente acima de partidos. O processo mutante, convém lembrar, vem lá de trás, quando abriu o balcão do “Lulinha paz e amor”, sob a bandeira de uma Carta aos Brasileiros (2002) cujo mérito foi expurgar de sua feição vestígios de “bicho-papão”. A antiga carranca amedrontava. A engenharia transformativa ganhou amplitude. Assim, Lula arrastou o PT para o meio da roda, onde hoje o partido convive, sem o antigo manto de vestal, com siglas cimentadas na argamassa da aliança governista.
“Metamorfose ambulante”, como já se classificou, Lula é uma figura permanentemente vitaminada por circunstâncias. Ao mesmo jornal espanhol disse que resolveu, “primeiro, construir o capitalismo para depois fazer o socialismo”. Aliás, Delfim Netto, quando ministro da Fazenda (1979-1985), cunhou a frase: “Primeiro, deixar o bolo crescer para depois repartir.” O professor defendia a ideia de que a riqueza, para ser distribuída, deveria, antes, ser criada. O capitalismo imaginado por Lula não seria a riqueza pensada por Delfim? Se é isso, a conclusão é inevitável: o Lula de hoje é o Delfim de ontem. Ou, se quiserem, Delfim pelejou, pelejou, até conseguir plantar uma frondosa árvore na seara do lulismo.
Em outra imbricação aparecem, lado a lado, o escolado atual presidente e o scholar sociólogo, o ex-presidente Fernando Henrique. Luiz Inácio costura firme o presidencialismo de coalizão, tarefa a que o tucano tanto se dedicou. Se Lula alcança mais sucesso nessa tarefa, é por conta do multilateralismo de que hoje é fanático seguidor. Há mais pontos de intersecção. FHC é frequentemente cobrado por adversários pela frase (que nega ter dito): “Esqueçam o que escrevi.” Lula disse algo parecido: “Esqueçam as bravatas que eu disse nos palanques.” Como se vê, a confraternização de verbos é uma constante na mesa da Realpolitik. Essa é a carga simbólica que Lula passa para Dilma.
A lapidação da imagem toma o fôlego dos pré-candidatos. Procuram um diferencial. Mas a percepção sobre atributos varia de segmento e classe. Nos estratos de cima, a comparação entre eles é a régua do “risco”. Serra e Dilma começam a ser vistos nessa moldura, até se ouvir um ponto mais consensual: seja qual for o ator escolhido, o Brasil não corre perigo de retrocesso. Serra ataca os juros altos, fustigando a conduta de Henrique Meirelles. Dilma, que no passado pertencia a um grupo do PT contrário à visão de Meirelles, hoje é sua defensora. Serra agrada ao empresariado por causa dos juros e da política de câmbio, mas abre temores por sugerir arrefecimento da autonomia do Banco Central. Uma no cravo, outra na ferradura. No frigir dos ovos, ambos estão mais próximos que distantes na direção da matéria econômica.
Dilma tinha dúvida, tempos atrás, sobre a existência de Deus. Hoje, se diz, primeiro, cristã e, num segundo momento, católica. Serra, por sua vez, compara o ateu ao fumante, que conhece o mal do cigarro, mas continua fumando. A pessoa sem Deus sabe que Ele está ali, mas não procura. Os ateus condenaram a comparação. Essas são as firulas que cercam a dissimulação.
E o que dizer da coerência dos partidos? Parcelas das siglas que, até o momento, integram a base aliada abraçam a oposição. Não é novidade. São gestos de um passado que renasce. No pico da incredibilidade, desponta a figura do ex-presidente Fernando Collor, que abriu intensa polêmica por usar, em 1989, expediente antiético que feriu a imagem de Lula. Candidato ao governo de Alagoas, hoje acolhe Dilma e Lula no palanque.
O filme, temos de convir, é ainda em preto e branco.
(“O Estado de S. Paulo” – 16/05/2010)
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