A pandemia do novo coronavírus evidenciou o drama cotidianamente vivido por milhões de brasileiros que, por viverem em localidades nas quais não há prestação de serviços de saneamento básico, estão expostos a diversas doenças. Mitigar os riscos de contaminação pela Covid-19 não é uma possibilidade para os desprovidos das condições essenciais de cumprimento das recomendações sanitárias emitidas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde. De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, vinculado à Secretaria Nacional de Saneamento, do Ministério do Desenvolvimento Regional, no Brasil aproximadamente 100 milhões de pessoas não têm serviço de esgoto e 35 milhões não têm acesso a água tratada.
Em regra, a titularidade dos serviços de saneamento básico é municipal. No que tange à execução, os municípios têm autonomia para decidir entre abertura e dispensa de licitação. Adotada a segunda modalidade, uma estatal é escolhida, comumente companhia estadual de saneamento, através da celebração dos chamados contratos de programa. De fato, ao possibilitar que estatais sejam contratadas sem licitação, a legislação pretere a eficiência e obsta a alocação de vultosos recursos privados, fundamentais para a expansão da rede de saneamento básico no país. Inequivocamente, o pilar sobre o qual se assentam os alarmantes dados mencionados no parágrafo anterior é o caráter estatizante e anacrônico do paradigma jurídico-regulatório vigente. A Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base estima que sejam necessários em torno de R$ 500 bilhões para que os serviços de água e esgoto sejam universalizados. Resta claro que, considerada a notória deterioração das contas públicas, somente a iniciativa privada pode garantir o avanço do setor.
Maria Silvia Bastos, ex-presidente executiva do BNDES e da CSN, atual presidente do conselho consultivo da Goldman Sachs no Brasil, em recente entrevista concedida ao especialista do Instituto Millenium, Luiz Felipe D´Avila, afirmou que, embora o setor seja atrativo ao capital privado, somente 6% dos serviços de saneamento no país são prestados por empresas privadas. A executiva também relatou que, segundo a OMS, para cada dólar investido em saneamento básico, se economiza cerca de quatro dólares e meio* em saúde global.
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Sobre horizontes políticos e faróis institucionais
Objetivando prover um novo marco legal ao saneamento básico no Brasil, foi apresentado o projeto de lei nº 4162/19, de iniciativa do Governo Federal. Em dezembro do ano passado, o referido PL foi aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados e, em razão de exitosas articulações no colégio de líderes do Senado Federal, será votado no dia 24 pela câmara alta.
Tendo em vista que, em junho de 2019, o plenário do Senado da República aprovou por expressiva maioria o PL 3261/19**, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), o PL 4162/19 tem alta probabilidade de aprovação, a julgar pela similaridade de conteúdo entre os projetos da lavra do senador cearense e o apresentado pelo Governo Federal. Contanto que a Casa da Federação aprove na íntegra o texto vindo da Câmara dos Deputados, ou que inclua meros ajustes não modificadores do mérito, o auspicioso PL 4162/19 será submetido diretamente à sanção presidencial, não retornando à Casa presidida por Rodrigo Maia.
Relatório: Na sexta-feira passada, o relator do PL 4162/19 no Senado Federal, senador Tasso Jereissati, apresentou parecer favorável à aprovação do projeto, sem sugerir alterações no texto aprovado pela Câmara dos Deputados.
Alguns pontos relevantes do PL 4162/19:
ANA (1) – A regulação do saneamento básico será centralizada na Agência Nacional de Águas. A agência terá competência para editar “normas de referência´´ para o setor. Ao abolir a pulverizada competência regulatória atual, o PL confere segurança jurídica ao setor, o que soa como música aos ouvidos de potenciais investidores. Há atualmente, pelo menos, 52 entidades responsáveis pela regulação do saneamento básico: 21 municipais, 25 estaduais, 5 consorciadas e 1 distrital. A ANA terá competência para definir padrões de eficiência e qualidade na prestação dos serviços, regular tarifas cobradas dos consumidores e instituir parâmetros relativos à caducidade da concessão.
ANA (2) – O PL cria, no quadro de pessoal da ANA, 239 cargos efetivos de especialista em regulação de recursos hídricos e saneamento básico. Algumas das atribuições precípuas dos especialistas serão a fiscalização e a elaboração de normas disciplinadoras do setor. Os profissionais citados possuirão poder de polícia para, por exemplo, interditar estabelecimentos e apreender bens ou produtos.
Licitação – Fim dos contratos de programa, por meio dos quais os municípios podem contratar empresas estatais, correntemente companhias estaduais, para prestarem serviços de saneamento básico com dispensa de licitação. A exigência de licitação viabilizará a livre concorrência entre estatais e empresas privadas.
Prorrogação – Os contratos de programa vigentes poderão ser prorrogados até 31 de março de 2022, por até 30 anos, caso as companhias contratadas demonstrem capacidade econômico-financeira para a prestação dos serviços.
Metas de universalização – Todos os contratos deverão prever metas de universalização dos serviços. Até o dia 31 de dezembro de 2033, a disponibilização de água potável deverá ter 99% de abrangência, enquanto os serviços de coleta e tratamento de esgoto deverão ter 90% de cobertura. As porcentagens serão calculadas sobre as populações das áreas atendidas. Excepcionalmente, desde que constatada a impossibilidade econômico-financeira de cumprimento das metas referidas, em caso de prestação regionalizada dos serviços, o prazo para a universalização poderá ser estendido até 1º de janeiro de 2040. Cabe esclarecer que os contratos em vigor terão até 31 de março de 2022 para incluir as metas de universalização.
Privatização – O PL prevê que: “Na hipótese de alienação de controle acionário de companhia estatal prestadora de serviço de saneamento básico, os contratos de programa ou de concessão em execução, ainda que ausentes os instrumentos que os formalizem, poderão ser substituídos por novos contratos de concessão para prestação regionalizada, com anuência dos titulares dos serviços”. Trata-se de relevante incentivo às privatizações no setor.
Blocos de municípios – Visando garantir a cobertura dos serviços de saneamento aos municípios pequenos e mais carentes, os quais não seriam naturalmente atrativos ao capital privado, o PL determina que os estados componham blocos de municípios, que deverão contratar os serviços em conjunto. Municípios que não sejam vizinhos podem participar de um mesmo bloco. Os blocos serão autarquias intermunicipais e só poderão contratar mediante licitação. A adesão municipal ao bloco é facultativa. O município pode licitar isoladamente, caso não concorde em integrar o bloco a ele definido pelo estado.
*A quantia exata é 4,3 dólares
**O PL foi posteriormente arquivado pela Câmara dos Deputados