A nota oficial do governo brasileiro sobre a atual situação da guerra civil na Líbia é exemplar do novo rumo de nossa política externa. Não chegamos a pedir explicitamente a saída do poder de Muamar Kadafi, como fizeram Turquia e Índia, mas expressamos nossa “solidariedade” ao povo líbio “na busca de uma maior participação na definição do futuro político do país, em ambiente de proteção dos direitos humanos”.
Como essa “maior participação” é impossível com Kadafi no poder, para bom entendedor basta.
Mas a nota oficial não tem o tom de crítica à ação da coalizão militar, como chegou a ser cogitado durante o dia de ontem, atribuindo-se ao governo brasileiro a intenção de deixar claro que, ao se abster na votação do Conselho de Segurança da ONU, já previa que a intervenção militar do Ocidente teria como consequência a morte de civis, como está ocorrendo.
O governo brasileiro limita-se, na nota, a “lamentar a perda de vidas decorrente do conflito no país”, sem atribuir a culpa à ação desencadeada por ordem pessoal do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, durante sua visita ao país.
As forças de coalizão têm a participação do Reino Unido, França, Canadá, Itália, Catar e Bélgica, com o objetivo de criar uma zona de exclusão aérea que impeça que as forças leais ao coronel Kadafi ameacem civis.
O governo brasileiro reafirma, na nota, apoio aos esforços do enviado especial do secretário-geral da ONU para a Líbia, Abdelilah Al Khatib, e do Comitê ad hoc de Alto Nível estabelecido pela União Africana “na busca de solução negociada e duradoura para a crise”.
Na votação no Conselho de Segurança, o Brasil se absteve, mas foi uma atitude completamente diferente de quando votou contra as sanções ao Irã por causa de seu programa nuclear que não se submete às inspeções internacionais.
Naquela ocasião, os Estados Unidos estavam empenhados em obter um consenso no Conselho que legitimasse
as sanções e isolasse o Irã na comunidade internacional, e Brasil e Turquia quebraram essa unanimidade, destoando da posição da maioria esmagadora do Conselho de Segurança da ONU.
Desta vez, o Brasil se absteve, mas teve a companhia de países de peso, como a Alemanha, e de China e Rússia,
que têm poder de veto no Conselho, além da Índia.
Também a alegação para a abstenção foi humanitária, não política, como em relação ao Irã. Ao expressar seu apoio à ação do enviado especial da ONU, o governo brasileiro também se coloca em acordo com as ações daquele organismo internacional, sem assumir uma posição isolacionista, como aconteceu no caso do Irã, quando defendeu sua negociação paralela sobre o programa nuclear daquele país contra a posição de todo o resto do Conselho de Segurança da ONU, e ainda pressionou a Turquia, que participara das negociações, a votar contra.
O fato de o presidente Barack Obama ter autorizado durante sua visita ao Brasil no fim de semana as ações militares contra Líbia ofuscou sua tentativa de usar a viagem à América Latina para limpar a imagem beligerante dos Estados Unidos no continente.
A insistência com que ele se referiu à superação da ditadura militar no Brasil pela ação de pessoas que, como a presidente Dilma Rousseff, resistiram em defesa da democracia, comparando a situação brasileira de 25 anos atrás com a atualidade dos países árabes que estão em crise política em luta por mais direitos, soou anacrônica e fora de propósito.
Até porque o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick foi parte dessa luta e até hoje os sequestradores, como o ex-deputado Fernando Gabeira e o ex-ministro Franklin Martins, são proibidos de pisar em solo dos Estados Unidos.
Ora, se a luta deles foi tão meritória, como castigá-los eternamente por seus atos guerrilheiros? A não ser que Obama se anunciasse disposto a tentar aprovar no Congresso a revogação da legislação que proíbe para sempre de entrar nos Estados Unidos quem sequestrou um americano, sua fala não passa de uma demagogia fora de época.
O discurso de Obama no Municipal do Rio estava claramente preparado para o cenário anterior, uma fala para o povo reunido na Cinelândia.
A subida de gravidade da intervenção na Líbia aumentou também o grau de segurança da comitiva presidencial e o discurso passou para dentro do teatro, para um público mais selecionado, mas o tom continuou claramente populista.
Mas se desbastarmos os arroubos retóricos do presidente americano ficará sua moderna visão do mundo multipolar, sua compreensão do novo jogo de poder geopolítico, onde os Estados Unidos continuam sendo, apesar da crise, a maior potência internacional, mas agora circundados por uma variedade de poderes regionais, como o Brasil, que ganham relevância nas decisões e precisam ser ouvidos.
Um relacionamento de “igual para igual” não significa que desconheçamos as assimetrias que persistirão, não apenas em relação ao Brasil, mas quer dizer que já temos influência suficiente para sermos parte do grupo mais amplo que compartilha as decisões internacionais.
Por isso mesmo é importante a posição equilibrada que o Brasil vem adotando na sua política externa, que, se não é oposta à executada pelo Itamaraty durante os anos Lula, esta sendo recalibrada para se tornar mais eficaz nesse novo mundo em que já marcamos nosso lugar.
A presidente Dilma estreou bem na chamada diplomacia presidencial, sem deixar de colocar de maneira clara nossas reivindicações, mas também sem politizar questões que podem ser negociadas sem idiossincrasias de ambas as partes.
O avanço que o comunicado conjunto deu na questão do assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, admitindo a justeza da pretensão, mesmo não sendo afirmativo como fora em relação à Índia e ao Japão anteriormente, certamente só aconteceu devido à constatação de que a nova postura de nossa diplomacia já não justifica receios, embora não seja admissível o governo dos Estados Unidos esperar uma posição submissa.
Fonte: O Globo, 22/03/2011
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