Que tal aperfeiçoar a democracia com mais arquivos, toneladas de papéis, verborragia tonitruante em palanques montados ao redor de uma gigantesca Torre de Babel? Fosse essa a hipótese para a comunidade política expressar sua opinião, a resposta seria um vigoroso “Não!”. Pois esse é o pacote que o governo federal acaba de embalar ao instituir, por decreto, a Política Nacional de Participação Social (PNPS), mais uma sigla no dicionário de coisas perfunctórias, figuras mirabolantes, balões de ensaio e experimentos que incham a paquidérmica máquina do Estado.
Fica patente a intenção do Executivo de canalizar as aspirações sociais, as reivindicações setoriais e as demandas de categorias profissionais, enfim, os ecos das ruas, que desde meados do ano passado tentam abrir as veias congestionadas de nossa democracia representativa e dar vazão ao poder centrípeto, que corre das margens para o centro em todos os espaços do território. O governo, de maneira unilateral, cria um conjunto de instâncias – conselhos, conferências de políticas públicas, ouvidorias públicas, mesas de diálogo, fóruns interconselhos, audiências públicas, consultas públicas, interfaces e ambientes virtuais – que, ao fim e ao cabo, nada mais são do que eixos paralelos da democracia participativa.
A ideia de fortalecer a democracia direta é boa? Sem dúvida. A metodologia é que parece enviesada. O governo deixa claro que os mecanismos propostos integrarão o que designa Sistema Nacional de Participação Social, sob a égide do Poder Executivo. Essa é a polêmica que se abre. Fazer brotar um conjunto de novas espécies na floresta de nossa democracia participativa sem espiar o que dispõe a Carta Magna é atropelar o Poder que tem funções legislativas, o mesmo que abriga os canais de nossa democracia direta – o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, conforme reza o artigo 14, que trata da soberania popular. Pelo primeiro instrumento, o povo adquire o poder de sancionar as leis; o segundo abre a possibilidade ao povo de aprovar fatos, situações, temáticas concernentes à estrutura do Estado ou do governo; e o terceiro permite que a sociedade, por meio de suas organizações, proponha projetos de lei ou alterações na norma constitucional, condição que exige determinado número de assinaturas.
Imaginem, agora, uma torrente de audiências públicas, consultas, fóruns de debates, ouvidorias, reuniões periódicas de conselhos populares sob o império do Poder Executivo. O risco é de que essa composição possa transformar-se em instrumento para rearranjar não apenas os modelos de gestão pública, mas interferir no próprio escopo legislativo. Sob a aparente boa intenção de alargar os canais da comunicação ascendente – da sociedade para o governo -, o que efetivamente se deixa ver é um acervo expressivo, de índole utilitarista, com evidente interferência no campo funcional sob responsabilidade do Parlamento. Urge lembrar que os órgãos do Poder Executivo já se obrigam, por estatuto, a instituir critérios que se voltem para a transparência, a melhoria de produtividade, o zelo, a racionalidade, enfim, a maximização de resultados.
A estratégia de abrir os pulmões do governo e, mais, de “viabilizar a participação da sociedade civil no processo decisório e na gestão de políticas públicas” seria razoável se não tivéssemos uma máquina pública usada como extensão partidária. O aparelhamento dos mecanismos estatais chegou ao ápice no ciclo petista, o que tem contribuído para o desmonte de sistemas de alta referência, até mesmo aos olhos internacionais, como a Embrapa, hoje pálida imagem dos tempos em que era ícone de padrões de qualidade em pesquisa agropecuária. Daí a suspeição de que a multiplicação de órgãos de participação social integre a estratégia de adensamento de grupos e castas na administração federal, mesmo que as regras para composição das instâncias abriguem “representantes eleitos ou indicados pela sociedade civil”, garantindo-se “a diversidade dos sujeitos participantes”.
As intenções explícitas nessa envolvente promessa não evitarão os dribles na direção do aparelhamento do Estado. Portanto, o viés politiqueiro transparece no pacote das instâncias propostas, a par da constatação de que o governo vem perdendo força (e credibilidade) entre as organizações sociais. Como é sabido, nos últimos anos o governo cooptou e acolheu em parcelas importantes da administração pública grupos que, até então, assumiam posições de vanguarda nas frentes de mobilizações sociais, como a CUT. O largo espaço das relações trabalhistas, dominado por ela e, em menor escala, pela Força Sindical (em razão de posições trocadas no campo político), não tem propiciado condições para modernização legislativa na área, bastando anotar a barreira imposta à legislação sobre terceirização de serviços, em tramitação na Câmara dos Deputados. Pois bem, um dos gargalos que atravancam o sistema trabalhista é a posição obsoleta de centrais sindicais quanto às relações do trabalho, a partir de sua luta contra os serviços terceirizados, sob o olhar complacente de uma Justiça trabalhista que teima em enxergar o país na era da Revolução Industrial.
Daí se chegar à inferência: a cooptação de entidades ligadas ao universo do trabalho arrefeceu o ambiente reivindicatório e as paralisações paredistas. Milhões de trabalhadores viram suas entidades caírem no “berço esplêndido” estatal. O vazio criado pelo amortecimento das grandes organizações tradicionais abriu lugar a novos polos de poder, esses que estão nas ruas abrindo o ciclo do “queremos mais e melhor”. Sentindo-se empurrado por ondas sociais em pleno curso, o governo vê uma luz no fim do túnel: a locução social por meio de uma bateria de novas instâncias. Esse é o curinga escondido no baralho. A ideia tem fundamento. Bate, porém, nos vãos centrais do Parlamento, catedral de nossa democracia representativa.
Fonte: O Estado de São Paulo, 8/6/2014
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