Um grupo de economistas lança hoje no Rio de Janeiro um documento de 91 páginas, chamado Carta Brasil, com sugestões para o governo Jair Bolsonaro. Assinam o documento mais de cem profissionais da área, de diferentes filiações políticas, mas com a mesma orientação ideológica, de matriz liberal.
O documento, que será encaminhado ao futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, tenta fornecer aquilo que desde o início faltou a Bolsonaro: um programa formal de governo, com propostas concretas para 13 áreas distintas, como Previdência, tributos, educação, segurança, política social ou comércio exterior.
A maior parte das medidas – como a necessidade urgente de uma reforma previdenciária, o foco no aumento de produtividade, a simplificação tributária ou a autonomia do Banco Central – são consensuais. Algumas entram em conflito com a agenda declarada pela equipe de Bolsonaro: a transformação do Mercosul em área de livre-comércio, a importância da agenda ambiental para o desenvolvimento, a necessidade de aliviar a ocupação das prisões.
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Os empecilhos à implementação das ideias nem estão nas eventuais divergências. A exemplo de outras iniciativas do tipo, o documento deixa em aberto a questão mais importante: como construir o consenso político necessário para pôr tudo em prática.
O governo chega a Brasília sem nenhuma experiência de negociação parlamentar, sem orientação estratégica e uma agenda ambiciosa demais. Num momento em que a questão mais urgente é a crise fiscal, temas que deveriam ter sido deixados para depois ganharam vulto desproporcional e assumiram o centro da discussão.
É o caso da facilitação do porte de armas e de mudanças nas “regras de engajamento” adotadas por policiais contra o crime, como a norma eufemisticamente chamada “excludente de ilicitude” – na prática, uma licença à polícia para matar bandidos mediante certas condições.
Ou ainda do projeto Escola Sem Partido, tentativa de reação à doutrinação ideológica em escolas e universidades e de proibir a discussão de temas sexuais em sala de aula. As demandas são legítimas para o público conservador, mas o projeto não resolve a contento nenhuma delas. Embute, em vez disso, o risco de restringir liberdade dos educadores e de criar um clima de vigilância e perseguição que nada tem a ver com democracia.
A discussão esbarra em questões de fundo religioso e ideológico, que contribuem para acirrar ainda mais o quadro de polarização e ódio mútuo que o país vive depois da eleição. A insistência do novo governo em bater nessas teclas para agradar ao público mais animado com a vitória nas urnas representa uma armadilha para a própria gestão Bolsonaro, pois confere aos parlamentares um meio de pressão por concessões na agenda mais urgente, a econômica.
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Caso o novo governo decidisse adotar para ela as propostas da Carta Brasil, não é difícil antever a resistência. Tome a área tributária. O documento fala em criar um novo imposto sobre valor adicionado (IVA) para substituir outros cinco (ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins) ao longo de dez anos, em rever a tributação do mercado financeiro, da transmissão de propriedade, da folha de pagamento e os regimes simplificados e isenções. Isoladamente, cada um desses itens já é um campo minado de interesses corportativos estabelecidos. Em conjunto, nem se fala.
No comércio exterior, a ideia é uma “abertura comercial soberana”, reduzindo o custo das importações, simplificando tarifas e priorizando acordos com União Europeia e México. Cada setor afetado pela abertura engrossaria a fila dos lobistas nos gabinetes brasilienses.
Na Previdência, a Carta apoia a reforma proposta pelo governo Temer que tramita no Congresso. Para o futuro, limita-se a levantar a possibilidade de transição para um sistema de capitalização, similar ao modelo chileno incensado por Paulo Guedes, ou então para um sistema misto. Não há análise detalhada de cada transição. Nesse capítulo, a resistência já está articulada em torno dos sindicatos e congressistas que negam até a existência do déficit previdenciário.
A louvável contribuição dos economistas não suprirá a principal deficiência do governo Bolsonaro: a política. A nova administração ainda não foi capaz de mostrar como conquistará e manterá uma maioria estável, tanto na Câmara quanto no Senado, sem a qual qualquer projeto ou programa de governo não passa de fantasia.
Fonte: “G1”, 12/11/018