A literatura econômica padece da ausência de uma elaboração teórica, com dimensão equivalente à keynesiana, dedicada a traçar caminhos para enfrentar os fenômenos que hoje mais influenciam o destino da humanidade: a inequidade social e a degradação ambiental. Este artigo abordará apenas a inequidade.
Muito já foi escrito sobre concentração de renda, sendo que o texto recente de maior repercussão foi o livro “Capital no Século XXI”, do economista francês Thomas Piketty, publicado em 2014. Minucioso diagnóstico a respeito do tema, abrangendo longo período de observação, o livro prestou valiosa contribuição ao árduo processo de conscientizar os detentores do poder a respeito da urgência em amenizar os desníveis extremados de renda.
Embora Piketty também aponte alguns caminhos para enfrentar a inequidade, a teoria econômica se ressente da ausência de profunda abordagem sobre políticas redistributivas. Perguntas essenciais ainda não foram respondidas, tais como:
a) qual o melhor conjunto de instrumentos de políticas públicas capaz de promover maior grau de equidade?
b) como esse conjunto modifica-se em função das peculiaridades de cada país?
c) qual a correlação econométrica entre redistribuição de renda e as taxas de investimento e de crescimento econômico?
d) em que medida a produtividade é influenciada pela melhor igualdade social? e) quais os reflexos sobre a áreas fiscal, monetária e cambial?
Logo pós a Segunda Guerra Mundial prevalecia a crença de que a prosperidade dos então chamados países subdesenvolvidos abrandaria espontaneamente os contrastes radicais na qualidade de vida de seus habitantes. Mas isso não aconteceu. Hoje constata-se que a efetiva relação causa – efeito é oposta à imaginada no passado; isto é, a redução dos contrastes é que constitui um dos fatores fundamentais à prosperidade.
Para visualizar de forma simplificada como o perfil da equidade condiciona o desempenho de economias capitalistas, convém observar três casos emblemáticos. O primeiro é o da Inglaterra, pioneira na Revolução Industrial, e que logrou atingir elevada taxa de crescimento econômico apesar da extrema concentração interna de renda prevalecente naquela época. Esse progresso só foi possível porque o destino principal dos bens então elaborados pelas fábricas inglesas era o mercado externo. Somente após a Primeira Guerra Mundial o nível de vida das classes desprivilegiadas subiu, avanço acentuado após a Segunda Guerra.
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No caso da Coreia do Sul, quando a guerra local de 1950/53 terminou, a economia do país encontrava-se arrasada, o índice de pobreza era elevado e a ajuda americana contribuiu para a reconstrução. O esforço pelo crescimento econômico intenso foi deflagrado na década de 70, mediante incisiva atuação do Estado. Iniciou-se a instalação de grandes e competitivas indústrias voltadas à exportação, compensando o então raquitismo do mercado interno. A partir de meados da década de 80 surgem medidas direcionadas à equidade social, mas as exportações continuam sendo mola propulsora da economia.
A experiência dos Estados Unidos difere das duas anteriores. País novo, organizado em torno da atividade rural, desde os primórdios de sua história os parâmetros satisfatórios de distribuição de renda, entre a população branca, fez florescer um mercado interno suficiente para sustentar o crescimento da economia. Esse contexto viabilizou a rápida industrialização posterior, onde o papel do mercado externo era apenas coadjuvante. Graças ao volume de bens e serviços que os americanos foram e são capazes de consumir, o país tornou-se potência. Lamentavelmente, desde a década de 80 os Estados Unidos foram capturados por um mecanismo de recrudescimento da desigualdade, cujas consequências não são animadoras.
Cito os três exemplos acima para relembrar que :
a) em países onde prevalece intenso contraste social, a única forma de obter elevada taxa de crescimento do PIB restringe-se à existência de competitividade capaz de dinamizar as exportações. Posteriormente, é possível até um esforço para diminuir a desigualdade;
b) em países detentores de satisfatória equidade social e expressiva população, as chances de crescimento proveem do mercado interno, dependendo menos do externo.
A concepção de um novo arcabouço teórico que balize políticas redistributivas é especialmente essencial ao Brasil e demais nações populosas da América Latina. Isto porque a realidade exposta no parágrafo anterior conduz à conclusão de que a única hipótese desses países alcançarem patamar de desenvolvimento econômico e social elevado consiste em implementar políticas de atenuação das disparidades de renda, visando alargar o mercado consumidor interno. Agora não há espaço para acelerar o desenvolvimento mediante ingresso exuberante no comércio exportador de bens industrializados e de serviços, hoje comodamente habitado pelos países asiáticos, Estados Unidos e Europa.
Embora as exportações provenientes da agropecuária, do agronegócio e de recursos naturais possam ser benéficas aos países maiores do continente, dificilmente serão suficientes para promove-los à condição de desenvolvidos. Esse gênero de vendas ao exterior reúne potencial para produzir maior impacto sobre o PIB apenas em países menores que, por essa trilha, podem atingir confortável status econômico e social.
Não faz sentido politizar o debate sobre os males gerados pela extrema desigualdade de renda. Assim como a penúria ambiental é realidade cientificamente comprovada, imune a controvérsias ideológicas, também os benefícios da maior equidade social sobre o dinamismo da economia são inquestionáveis. Apesar de haver subvertido a rotina internacional, o covid-19 não anula a premência em encarar a extrema discrepância de renda como ameaça à economia do planeta.
Fonte: “Valor Econômico”, 24/8/2020