Historicamente, nossas crises econômicas seguiram um enredo padrão. No período pré-crise, a economia experimentava uma recuperação cíclica, reforçada em geral via aumento do gasto público. Com o tempo, a inflação subia, valorizando o câmbio real. O déficit externo aumentava, para que a oferta subisse para dar conta da crescente demanda doméstica, via mais importações e menos exportações. O governo, nadando em popularidade, ignorava os alertas a favor de uma pisada no freio. Por algum tempo os credores externos aceitavam financiar o déficit externo, em geral comprando títulos públicos, que têm menor risco de crédito e liquidez.
Um dia, porém, algum choque externo aumentava a aversão ao risco e o crédito externo secava. Sem os dólares para pagar pelo excesso de importações e continuar rolando a dívida externa, os governos, apavorados, pediam ajuda do FMI, que supria os dólares e tranquilizava os credores externos, mas não evitava a necessidade de amargos programas de ajuste.
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Estes têm sempre o mesmo figurino: reduzir as compras e aumentar as vendas externas, para gerar dólares bastantes para servir as dívidas. Isso passa por contrair a demanda doméstica (consumo das famílias, investimento e consumo do governo) e desvalorizar o câmbio, em geral apertando as políticas monetária e fiscal. Só que, com a desvalorização do câmbio, a contração da demanda doméstica e o aumento dos juros, a dívida e o déficit públicos explodem, deixando o governo enrascado em grave crise fiscal. As pessoas ficam mais pobres, o desemprego aumenta e a inflação também. A popularidade do governo despenca e a incerteza política aumenta.
Essa é basicamente a história da atual crise argentina. Em que pesem os problemas com as estatísticas de nosso vizinho, é possível ver os sintomas acima nos números. Por exemplo, o déficit primário do governo geral foi de 1,6% do PIB em 2012 para 4,5% do PIB em 2017, enquanto o déficit nominal foi 3,0% para 6,5% do PIB e a dívida pública de 38,9% para 52,6% do PIB. O déficit em conta corrente, por sua vez, saltou de 0,4% do PIB em 2012 para 4,8% do PIB em 2017.
Com o aumento da aversão ao risco, provocada pelo aperto das condições financeiras internacionais e o aumento do risco geopolítico, os investidores começaram a tirar dinheiro das economias emergentes e a Argentina se viu em apuros. Seguindo o figurino, o país procurou o FMI e fez um acordo, o que não impediu que o peso argentino caísse 16,9% entre 12 de março e 12 de junho, em termos reais, contra uma cesta de moedas. A fase dolorosa da crise no país está apenas começando.
O real também se desvalorizou nesse período – 6,8% em termos reais – e a bolsa e os títulos públicos caíram com força: em dólar, quedas de 26,3% e 12,7%, respectivamente. Mas muitos analistas se perguntam, por que? Afinal de contas o déficit em conta corrente do Brasil é pequeno (0,4% do PIB), e amplamente financiado pelas entradas de capital estrangeiro, as reservas internacionais superam nossa dívida externa, o governo é credor em dólar, com as contas públicas melhorando quando o real se desvaloriza, etc. O real, por sua vez, não parece sobrevalorizado.
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Creio que há duas explicações para porque o Brasil foi ceifado pela crise dos emergentes. A primeira é a péssima situação fiscal, com o déficit e a dívida pública em patamares altíssimos. A dívida pública, em especial, está em trajetória explosiva. O paradoxo, de fato, era o Brasil ter tido até pouco tempo atrás um risco-país tão baixo, provavelmente por conta da elevadíssima liquidez internacional e dos ganhos com o boom dos preços das ações e títulos públicos: entre 15 de março de 2016 e a mesma data em 2018, altas em dólar de 103,5%% e 52,7%, respectivamente. Não só a mudança do cenário externo, mas também a exaustão desse ciclo de alta diminuiu o interesse por ativos brasileiros.
A segunda explicação é que o Brasil está com as contas externas ajustadas porque fez o ajuste externo em 2014-16, por conta da brutal recessão e da desvalorização do câmbio que experimentou nesse período. Só que junto vieram as notícias ruins: queda das receitas públicas, uma altíssima taxa de desemprego e um governo muito impopular, exacerbando a incerteza política e impedindo que se enxergue que caminho será possível tomar para resolver a crise fiscal.
É como se tivéssemos pulado direto para a fase final da crise. Assim, esta crise é diferente, mas nem tanto quanto pode parecer à primeira vista.
Fonte: “Correio Braziliense”, 27/06/2018