Sem credibilidade, sem coragem para uma séria faxina em suas contas e sem competência para produzir um bom programa de recuperação da economia, o governo pode pelo menos encenar alguma atividade no combate ao Aedes aegypti, o mosquito transmissor do zika e dos vírus da dengue e da chikungunya. A presidente Dilma Rousseff e sua equipe já deveriam ter anunciado um pacote de cortes de gastos, passo inicial de uma indispensável arrumação das finanças públicas. Mas decidiram adiar o anúncio para o fim de março. O adiamento foi comunicado ao público na quinta-feira à noite, depois de uma reunião da Junta Orçamentária.
Na sexta de manhã, o Ministério de Relações Exteriores divulgou a agenda do ministro interino, embaixador Sérgio Danese, para o dia seguinte. Ele estaria no sábado em São José dos Campos, acompanhando o prefeito, Carlos José de Almeida, nas ações contra o mosquito. Todos os ministros, secretários executivos e presidentes de empresas públicas, autarquias e fundações federais estariam espalhados pelo Brasil, participando da grande mobilização contra o mosquito. O chanceler Mauro Vieira, em missão no exterior, seria privado dessa experiência, mas o interino poderia representar dignamente o Itamaraty. A presença de um diplomata seria muito apropriada. Não são de origem estrangeira, afinal, o mosquito e os vírus por ele transportados?
A decisão de envolver na guerra ao mosquito os ministros, vice-ministros, presidentes de estatais e outros figurões deve ter enchido de inveja o líder supremo da Coreia do Norte, Kim Jong-un, renomado especialista em grandes encenações patrióticas.
Um detalhe ainda realça a grandiosidade da mobilização brasileira. As leis nacionais privam o chefe de governo do poder de executar seus subordinados com tiros de artilharia antiaérea, privilégio em vigor na Coreia do Norte. No Brasil, o comando presidencial sobre os ministros e outros auxiliares depende, portanto, do vigor das normas legais e burocráticas, da ascendência pessoal e de outros fatores basicamente soft, excetuada, talvez, certa ênfase da linguagem.
O vigor exibido na mobilização da alta burocracia contra o mosquito, a dengue, a chikungunya e a zika parece faltar, no entanto, quando se trata de ações menos vistosas, como o corte de gastos públicos e a recriação das condições de crescimento. Quando a presidente se reuniu com os ministros da Junta Orçamentária, na quinta-feira, falava-se extraoficialmente em cerca de R$ 24 bilhões de redução da despesa. Algumas semanas antes a estimativa oscilava entre R$ 50 bilhões e R$ 60 bilhões, mas os números encolheram rapidamente. No fim, nenhum corte foi anunciado depois da reunião de quinta e o assunto foi deixado para depois. Mas haverá alguma proposta relevante dentro de um mês?
O governo deverá apresentar, segundo se informou em Brasília, um projeto de controle da expansão do gasto público. Deve ser, pelas informações até agora disponíveis, algo semelhante ao padrão seguido há muitos anos no Chile. O governo economiza nos anos bons, produzindo um robusto superávit primário (sem contar o gasto com juros), e acumula alguma gordura para gastar mais livremente nos tempos mais difíceis.
Essa regra permite agir contra o ciclo e estimular a economia quando a atividade se retrai. Alguns governos sul-americanos, como os do Chile, da Colômbia e do Peru, conseguiram criar esse espaço de manobra, reconhecido por instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Além disso, países com alguma disciplina fiscal têm geralmente a vantagem de inflação mais baixa. Isso permite alguma folga também na política monetária. Juros moderados e crédito mais fácil também facilitam a recuperação da atividade e a criação de empregos.
No Brasil, a política federal destruiu as duas condições, especialmente a partir de 2011. A tolerância à inflação abriu caminho para a aceleração da alta de preços. A taxa oficial de inflação, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), chegou a 10,67% no ano passado e as projeções para este ano indicam números finais próximos de 8%.
A decisão do Banco Central (BC), em janeiro, de manter a taxa básica de juros em 14,25% seria até defensável tecnicamente, mas o lance foi jogado da pior maneira possível. A orientação mudou na última hora, contrariando indicações fornecidas durante um mês e meio e justificando amplamente a suspeita de interferência da presidente da República.
A credibilidade lentamente reconquistada a partir de 2013 foi pelo ralo. A imagem do BC havia piorado consideravelmente a partir de agosto de 2011, quando a instituição, ao iniciar uma política de redução de juros, se alinhou à orientação da presidente Dilma Rousseff. Quando essa política se tornou insustentável, em abril de 2013, e a estratégia mudou, começou a reconstrução da credibilidade, mas esse esforço foi jogado fora.
Até janeiro, o BC ainda era uma âncora, embora de peso limitado, numa economia à deriva e cada vez mais próxima de um desastre descomunal, com mais uma contração superior a 3% estimada para este ano, desemprego em alta e inflação muito acima dos padrões internacionais.
Escritores antigos costumavam usar a imagem de pilotos, quando discorriam sobre governantes e políticos. A palavra latina gubernator, origem de governador, significa timoneiro ou piloto. É o mesmo sentido da palavra grega kybernetes, obviamente aparentada com cibernética, ciência da informação e do controle. No caso do Brasil, falta pilotagem para desviar o barco do perigo e o roteiro de 2016 e 2017 é cada vez mais assustador. Pior que isso: nem na âncora se pode confiar para garantir alguma estabilidade. Tudo isso pode tornar a navegação mais emocionante, mas quem quer tantas emoções?
Fonte: O Estado de S.Paulo, 14/02/2015.
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