Caso seja aprovada a reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional (PEC 45 da Câmara e PEC 110 no Senado), os governadores perderão o poder de conceder incentivos fiscais do ICMS com o objetivo de atrair indústrias para seus Estados. Pela reforma, o ICMS e quatro outros tributos sobre o consumo serão substituídos por um moderno Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), que se chamará Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
Chegará ao fim a lamentável guerra fiscal, que causou distorções alocativas, quedas de produtividade e piora da qualidade do ICMS. Antes restritos aos Estados menos desenvolvidos, os incentivos fiscais se generalizaram por todo o País, transformando-se em jogo de soma negativa, em que todos perdem. Caiu a arrecadação, em muitos casos sem atrair investimentos.
Incentivos fiscais para conquistar indústrias surgiram com a reforma tributária que entrou em vigor em 1967. A criação do ICM (depois ICMS) deu aos governadores do Nordeste a inédita oportunidade de usar esse tributo em favor do desenvolvimento regional.
Como a tributação se dava na origem, bastava isentar a cobrança e conceder um crédito presumido à empresa. Com a extensão da medida a vários Estados do Norte e do Nordeste, foi necessário regularizar a situação. Reconheceu-se a legitimidade do uso do ICM com propósito desenvolvimentista, mas exigiu-se que todas as unidades da Federação concordassem, mediante convênio.
No mundo é raro o uso de impostos sobre o consumo como instrumento para conceder incentivos fiscais, pois isso significa, na prática, autorizar o beneficiário a se apropriar do imposto pago pelo consumidor. Na grande maioria dos países utilizam-se tributos devidos pela empresa, particularmente o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica.
Mais de Maílson da Nóbrega
Educação: devemos gastar mais?
Boa intenção, difícil aplicação
A vantagem oculta do ingresso do Brasil na OCDE
A guerra fiscal contribuiu para criar o vigente caos do ICMS, hoje uma das principais causas de ineficiências da economia. O caráter disfuncional do tributo é certamente uma das razões por que os governadores apoiam a PEC 45, com algumas ressalvas, mesmo sabedores de que renunciarão ao ICMS e que será vedado o uso do IBS para atrair indústrias. Isso é inédito.
Os Estados propõem a criação de um Fundo de Desenvolvimento Regional, equivalente a 2% do produto interno bruto (PIB), a ser suprido com recursos da União, para financiar ações desenvolvimentistas em seus territórios (emenda 192 à PEC 45). A ideia é boa, embora o valor do fundo, que superaria R$ 120 bilhões, pareça exagerado. O governo federal ainda não opinou.
Parece ter chegado a hora de adotar mecanismo bem-sucedido em outros países, particularmente em Estados americanos, pelo qual se concede uma subvenção (grant) à empresa que se deseja atrair. O benefício é concedido em dinheiro (cash) e tem por objetivo reduzir o custo do investimento. Realizada a inversão, a empresa continua ou passa a ser um contribuinte normal, como todos os demais.
Esse método tem muitas vantagens em relação aos incentivos fiscais do ICMS. Além de evitar a apropriação do imposto pago pelo consumidor e a criação de regimes especiais de tributação, a subvenção direta, mediante um valor fixo entregue à empresa, é totalmente transparente, ao contrário do opaco sistema atual. Pode-se exigir que o valor destinado à concessão do benefício conste do orçamento a ser aprovado pelas Assembleias Legislativas, o que facilitará o trabalho dos tribunais de contas e a avaliação posterior dos efeitos do benefício. O escopo do mecanismo poderá ser mais amplo, abrangendo não apenas indústrias, mas um amplo conjunto de atividades, incluindo as de serviços, entre estes, os de software e turismo.
Adicionalmente, os Estados não renunciarão à receita de sua parte no IBS, como hoje ocorre com o ICMS, nem poderão imputar aos municípios a perda de sua parte na arrecadação do tributo. Hoje, ao conceder incentivos fiscais, os Estados obrigam os municípios – aos quais pertencem 25% da arrecadação do ICMS – a renunciar à sua parte no tributo, incluídos os que não se beneficiarão dos efeitos do investimento incentivado.
No longo prazo, tais investimentos tenderão a reduzir desigualdades regionais, a contribuir para a integração nacional e, assim, a promover tanto o desenvolvimento do País quanto a sua qualidade. Não é por outra razão que programas de atração de investimentos em favor de regiões menos desenvolvidas são não apenas toleradas, mas apoiadas em todo o mundo.
A questão da má alocação de investimentos tenderá a ser residual, principalmente por causa da ampla gama de setores que poderão ser elegíveis para o programa. E a ideia de “roubar” indústrias de outros Estados deixará de ter relevância.
A adoção do modelo aqui sugerido pode, se adotado, dar origem a uma nova fase no processo de desenvolvimento regional, sem muitos dos defeitos da situação atual. Assim, entre as inúmeras vantagens da PEC 45 está a pouco percebida indução à busca de novos instrumentos destinados a reduzir as desigualdades regionais.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 10/3/2020