O ministro Celso de Mello, do STF, ao interpretar o § 4.º do artigo 86 da Constituição federal – assim redigido: “o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções” -, declara que “a norma consubstanciada no artigo 86, § 4.º, da Constituição reclama e impõe, em função de um caráter excepcional, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal” (Inq 672-QO, DJ 16/4/93).
Por essa razão entende que o presidente “não dispõe de imunidade, quer em face de ações judiciais que vierem a definir sua responsabilidade civil, quer em função de processos instaurados por suportar prática de infrações político-administrativas”. E conclui: “A Carta não consagrou, na regra pactuada em seu artigo 86, § 4.º, o princípio da irresponsabilidade penal absoluta do presidente da República”.
Tais considerações preliminares eu as faço em face do arquivamento de qualquer investigação sobre a presidente Dilma Rousseff pelo ministro Teori Zavascki, a pedido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, no processo sobre o assalto à Petrobrás, nada obstante ter sido citada 11 vezes, segundo informou à plateia o senador Ronaldo Caiado, após palestra que proferi na Fiesp (Consea) sobre “culpa grave” como crime de improbidade administrativa.
Mostrei, naquela ocasião, que o STJ em dois casos, no Recurso Especial n.º 816.193-MG (2006/0015183-8) e no AgRg no Agravo de Instrumento n.º 1.375.3-MG (2010/0222887-9), decidiu que imprudência, negligência, imperícia ou omissão que provoquem grave lesão ao patrimônio público constituem crime de improbidade administrativa, mesmo que o chefe do Executivo não se tenha beneficiado pessoalmente do desvio de recursos das burras oficiais.
Ora, o § 4.º do artigo 86 da Constituição está subordinado à introdução do artigo, que declara: “Admitida a acusação contra o presidente da República…” – o que pressupõe que investigações preliminares sejam feitas para que a acusação se concretize, visto que sem investigação não pode haver acusações. A investigação criminal é fundamental para definir se há ou não crime de improbidade. Não é possível, portanto, haver declaração de imunidade prévia, sem nenhum exame anterior.
No caso da presidente Dilma, ela foi citada 11 vezes como conhecedora dos fatos que continuam sendo desventrados, de uma prática em que não se conhece a data de encerramento. E durante o período em que ocorreram os fatos já apurados manteve a diretora e depois presidente da companhia Graça Foster, no anterior e no atual mandato, até fevereiro de 2015. É, pois, fundamental que se investigue, até para que se saiba se há outras pessoas envolvidas ligadas à primeira mandatária.
[su_quote]Afastar da mera investigação personagem essencial do governo em que se deram os desvios mencionados é prejudicar a própria apuração[/su_quote]
Afastar da mera investigação personagem essencial do governo em que se deram os desvios mencionados é prejudicar a própria apuração, não se permitindo sequer provar a inocência da presidente, que seria sempre seu melhor salvo-conduto para a continuidade na vida pública. É que a não investigação, nada obstante citada 11 vezes como conhecedora do saque à Petrobrás, sempre deixará a impressão de que foi responsável e beneficiária do esquema montado na maior empresa estatal brasileira.
Investigação não significa condenação. O impeachment não pode ser realizado por fatos anteriores ao atual mandato, mas se houve ou não contaminação de um mandato ao outro só se poderá saber após as investigações. Por isso o § 4.º estabelece que o presidente não pode ser responsabilizado, mas, à evidência, não diz que não pode ser investigado. Como afirmou o ministro Celso de Mello, sendo regra excepcional de imunidade, a interpretação que se impõe é sempre estrita e limitada.
A investigação é necessária até porque há suspeita de que toda a campanha da presidente do primeiro para o segundo mandato se deu com o dinheiro recebido das empreiteiras envolvidas na Operação Lava Jato. Sua vitória, alicerçada em campanha milionária na qual os dados sobre a economia foram fantasticamente manipulados, restaria maculada, a justificar seu afastamento.
Ao interpretar o § 4.º e o artigo 86 da Carta Magna, nos Comentários à Constituição do Brasil que elaborei com Celso Bastos pela Editora Saraiva (15 volumes e mais de 12 mil páginas), falo em condenação, mas não digo que a “investigação” do envolvimento seja proibida, até para determinar o prazo inicial e final da prática delituosa. Investigação, repito, não é condenação. Após apurados os fatos, eventual processo de impeachment perante o Congresso não pode ter por fundamento ilícitos anteriores ao mandato em curso.
Por fim, lembro que muitos constitucionalistas americanos, ao examinarem a emenda que propiciou apenas uma reeleição à presidência, entendem que nos EUA se elege um presidente por oito anos, tendo o povo o direito de confirmar ou não sua permanência no quarto ano. Por essa razão é que raramente um presidente eleito no primeiro mandato não mantém seu mandato no segundo quadriênio.
Termino este artigo com a observação de que, apesar do respeito e admiração que tenho pelo ministro Teori Zavascki e pelo procurador-geral da República, é de reconhecer que o pedido de arquivamento de qualquer investigação, apesar de indícios constantes nas apurações feitas, aceito pelo STF, afastou o desconforto de aquela Corte ter de julgar a chefe de outro Poder. Mas se ela for inocente, permanecerão, infelizmente, as suspeitas de ter tido conhecimento do que ocorria nos porões da empresa enquanto era gestado, segundo o jornal “The New York Times”, o maior escândalo de corrupção da História do mundo.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 1º/5/2015
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