Escrevo de São Petersburgo. Afinal, qual é o papel do Brasil no mundo? É o de tipo de assunto do qual muitos correm. Já temos problemas demais no âmbito doméstico, por que não deixar isso com os especialistas, concentrando na violência urbana, na corrupção ou mesmo nas peripécias da campanha eleitoral?
Para quem está fora, mesmo por um curto período, o tema não é tão marginal assim. Impossível ignorar o drama dos refugiados. Só se fala nisso, crise nos Estados Unidos por causa da decisão de Trump, arestas entre Franca e Itália, crianças separadas da família, ciganos na mira da expulsão na Itália. É o tipo de problema sem solução em curto prazo, com viés de agravamento.
Se consideramos nossa fronteira setentrional, lá também essa questão se vem complicando ao longo dos três últimos três anos. Apesar de a Colômbia ser ainda o destino preferido, por causa do idioma comum, os refugiados da Venezuela entram em massa por Roraima. Essa presença já produziu alguns atritos entre o governo local e Brasília. Forçou a elaboração de um plano e jogou as Forças Armadas em parte de sua execução.
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Nos Estados Unidos, mais precisamente na fronteira mexicana, vivemos um problema inverso, no momento em que Trump decide adotar normas mais rígidas para conter o processo migratório. Na verdade, talvez seja essa a contradição mais importante no mundo contemporâneo: a fluidez dos capitais e mercadorias ante as barreiras crescentes ao movimento da força de trabalho.
Todo país deve ter sua política sobre o tema. Mas é preciso admitir que soluções mais amplas dependem de muitos atores internacionais. Minha hipótese para uma política de longo prazo é de que países como Brasil e Canadá, por suas dimensões, poderiam representar um alívio para o tenso clima associado ao tema dos refugiados.
São países com condições diferentes. O Brasil vive uma crise econômica, tem quase 14 milhões de desempregados, na verdade, mal consegue cuidar dos seus, quanto mais receber gente de fora. No entanto, embora os países do norte já tenham esgotado sua capacidade de administrar o problema, não esgotaram seus recursos financeiros. Uma grande troca, escalonada no tempo, poderia liberar volumosos recursos para o Brasil receber refugiados.
Imagino que isso possa causar reações, até essa hipótese ser descartada por absurda, descabida, fora da realidade. Mas, no caso presente dos refugiados venezuelanos, o Brasil já está sobrecarregado e deveria pedir ajuda internacional. A partir dessa experiência, talvez fosse possível formular um plano estratégico de maior alcance, que atraísse grande volume de capitais e um novo impulso para o desenvolvimento.
Outro ponto que me levou a pensar no papel do Brasil foi ver imagens da população haitiana celebrando a vitória da seleção brasileira na Copa. Nos vídeos, a pequena multidão desfilava as cores verde e amarela, hasteou uma bandeira do Brasil e cantou o hino do Haiti.
Naturalmente, essa proximidade foi estimulada pela presença brasileira nas tropas de paz da ONU. Mas deixa bem claro que o futebol, não só nessa região do mundo, é um componente válido do chamado soft power que o Brasil, potencialmente, pode projetar no mundo.
Encontrei em Moscou um maestro que vivia na Sibéria, ouviu Manhã de Carnaval e, depois, algumas composições de Tom Jobim. Tornou-se um grande admirador da música brasileira e já gravou numerosos trabalhos inspirados nela para o público russo. Apesar da confusão e mesmo da desgraça que às vezes nos atinge no Brasil, não deixa de ser animador ser recebido com um sorriso de simpatia quando revelamos nosso país de origem.
Mesmo que minhas ideias sejam descartadas, a tese básica é de que precisamos voltar a discutir nosso papel no mundo: achar um pequeno espaço da campanha eleitoral para tratar do tema. Numa campanha americana é bem maior, porque o tamanho corresponde aos interesses e à presença deles no mundo. Numa dimensão mais modesta, seria interessante que os candidatos avaliassem os principais problemas internacionais, alinhassem nossas vantagens e desvantagens e formulassem um roteiro para o papel do Brasil no mundo.
Não há condições para tratar o País na campanha como uma ilha de prosperidade ou mesmo de decadência. Estamos ligados ao mundo e como a campanha começa logo depois da Copa, vale a pena introduzir essa dimensão no debate.
Na verdade, ela existe, sim, de forma fragmentária. Bolsonaro apoiou a saída dos Estados Unidos da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Ficaremos com a visão de Trump ou com a do conjunto de países que insistem no diálogo e na conciliação, mas dentro da ONU?
Ciro Gomes afirmou no programa Roda Viva que a oposição na Venezuela é fascista. Será isso mesmo? Como a vemos? Como vemos o governo Maduro, tão distante da democracia? Esses temas não definem quem ganha ou perde a eleição. Mas alguns votinhos, como o meu, pedem definições bem claras.
Pelo que vejo daqui, da Rússia, os debates entre candidatos serão mais raros no primeiro turno. A saída talvez seja consultar os programas, se é que já estão completos. Assim, ao lado de saúde, educação, segurança, talvez possamos incluir política externa.
A ausência de clareza sobre o tema não indica que os candidatos a deixarão de lado. Ao contrário, tendem a fazê-la de forma autocrática. Como acho que foi realizada, ao longo do tempo, a política do PT, focada nos países vizinhos com tendência bolivariana, gastando milhões com a ideia de projetar seu líder na América Latina e na África. E levando algum das empreiteiras.
São tópicos que fazem sentido na política da esquerda, no entanto, não foram discutidos amplamente. Os investimentos eram semiclandestinos e só vieram à tona com a eclosão da Lava Jato. Só há um perdedor com o silêncio sobre o tema: a sociedade.
Fonte: “Estadão”, 29/06/2018