*Rafael Alvim
Quando realizei o processo para tirar CNH, precisei fazer as 45 horas obrigatórias de aulas teóricas. No momento em que entrei na sala pela primeira vez, me surpreendi ao notar que o assunto lecionado não era introdutório. Somente o veria mais à frente do curso. Então que raciocinei: havia, digamos, por volta de 15 alunos, cada um iniciando em um momento diferente e tendo disponibilidade distinta de horas diárias; assim, o resultado era que a aula ministrada do professor seguia um percurso próprio e distante, enquanto cada aluno via diversas aulas repetidas ou deixava de ver certos conteúdos.
Em poucos dias, a autoescola mudou de sede. No novo local, espantei-me ainda mais ao ver que, dentro da sala de aula, passaram a ser reproduzidas aulas gravadas para assistirmos. Computando o total de horas das videoaulas, o curso todo demorava pouco mais de 4 horas, composto por diversos vídeos de 2 a 3 minutos. E lá estava eu, obrigado a colocar religiosamente minha digital para entrar e sair da autoescola, com 45 horas no total (daria para ver o curso 10 vezes?), porque o Detran exigia.
Quando vi o curso inteiro pela terceira vez, comecei a treinar questões; e, quando as questões ficaram enfadonhas, juntei-me aos meus colegas — alguns colocavam fone e ficavam à deriva na sala — e passei a fazer outras coisas, ignorando as aulas. Qualquer coisa menos ter que ver pela quarta vez o curso que eu sabia do começo ao fim. Havia ainda alguns dias que eram professores reais, mas foram se tornando raros — e, evidentemente, pouco necessários, já que uma aula de 50 minutos deles entregava menos conteúdo que alguns vídeos de 3-4 minutos.
Depois de ter feito o exame teórico, realizado aulas práticas — feitas junto a um instrutor de verdadeiro bom coração que alegrava minhas sessões — e finalmente tirado a CNH, a felicidade de poder dirigir pela cidade “livremente” me fez esquecer desses episódios. Até que estudei a teoria batista/contrabandista de Bruce Yandle. O economista norte-americano, usando da sua experiência vivida enquanto diretor executivo da Comissão Federal de Comércio nos EUA, propôs que, com bastante frequência, a regulação governamental é aparentemente motivada por um interesse social relevante (causa nobre “batista”), mas que, na verdade, está mais preocupada em dar privilégios de monopólio ou redução de concorrência a grandes empresas que a ajudar a sociedade (causa verdadeira, “contrabandista”).
O exemplo que Yandle fornece é sobre regulação de cortadores de grama. O Governo teria imposto a necessidade de o equipamento ter peças especiais que protegeriam o usuário durante o uso, pois havia pesquisa mostrando que estatisticamente haveria menos acidentes. Yandle narra que, enquanto agente da Comissão Federal de Comércio, para adquirir informações de como o projeto impactaria o mercado, foi se encontrar com o dono de uma das maiores empresas do ramo. A expectativa era que a regulação trouxesse prejuízo à companhia. Porém, contra suas expectativas, o dono chamou-lhe para um canto reservado e, olhando para os arredores a fim de verificar se alguém os ouvia, cochichou-lhe que tal regulação era, na verdade, maravilhosa para ele, porque as pequenas empresas não conseguiriam colocar as peças exigidas em seus produtos. Dessa maneira, mesmo que houvesse maiores custos de produção, ele seria mais que compensado pelo aumento de vendas em decorrência da queda de empresas menores.
Nesse caso, Yandle diz que a narrativa “batista” do governo seria a proteção da vida. No entanto, há muitas maneiras de estruturar a regulação. É possível estipular um tempo maior ou menor para fazer a lei valer (dar tempo às empresas, sobretudo menores); exigir peças a mais ou a menos para segurança (e quais); ou, ainda, não exigir peças específicas, mas que o equipamento passe por testes de segurança feito pelo governo. O que Yandle constata é que, muitas vezes, o Governo escolhe as piores formas de regulação possíveis, que minam a participação de pequenas empresas e que são contrárias às regulações preconizadas pela teoria econômica. Como as regulações são feitas por especialistas inclusive em Economia, Yandle chega à conclusão: não raramente, o discurso bonito por trás da regulação é a fachada de um interesse inconfessável.
Impossível foi, ao ler essa teoria, não me lembrar das autoescolas. Comecemos pelas aulas teóricas. Pela Lei, se exige tanto o controle do tempo de aula quanto o ateste do conhecimento pela prova. Ou seja: controle sobre o processo (estudar, ou melhor, estar presente na sala) e sobre os resultados (conhecimento, demonstrável pela prova). No entanto, quando a Administração Pública vai realizar uma licitação e precisa escolher se vai remunerar uma empresa por horas trabalhadas ou por resultado entregue, a regra é: se os resultados forem observáveis e passíveis de serem avaliados, remunere por resultado. Contratou uma empresa para produzir um software para um setor do Estado? Não importa o quão importante seja, se o resultado é passível de ser avaliado, então o pagamento deverá ser por resultado. O mesmo, em tese, deveria se dar com o conhecimento de trânsito. Se o aluno faz uma prova com diversas questões de cada eixo temático, ele já está mostrando seu conhecimento. Obrigá-lo a ficar sentado encarando um professor (ou uma videoaula gravada que poderia estar vendo em casa) por 7 vezes mais tempo que o necessário é contraproducente e desnecessariamente caro.
Argumento semelhante poderia se dar com aulas práticas, em especial à proibição de o aluno praticar com um carro em qualquer lugar do país. Está em uma rua rural sem movimento algum, acompanhado de responsáveis? Não importa. Não pode nem ligar um carro fora de uma autoescola. O processo inteiro do aprendizado precisa ser em uma autoescola. E o contexto das aulas se torna ainda pior no caso de motos, já que todo o processo de aprendizado e posterior avaliação se dá dentro de uma pista artificial, com movimentos cobrados de forma artificial e às vezes sem necessidade. Não fiz exame para dirigir moto, mas, na autoescola para carro, uma coisa que eu sempre tinha que fazer para começar a dirigir era tirar a cabeça para fora da janela e observar atrás de mim se havia carros vindo. Porém, a visibilidade assim é péssima, bem pior que simplesmente olhar para o retrovisor — além de que, fora da autoescola, colocar a cabeça para fora é infração de trânsito grave. Por que então não fazer essa ilegalidade durante do exame faz perder ponto? Por que há regras e procedimentos teatrais que são ensinados e exigidos sem que pouco afetem a segurança no trânsito, e que mais causariam danos que benefícios?
A resposta foi dada por Yandle: são regulações feitas para beneficiarem as empresas de autoescola (por meio delas, podem reprovar mais alunos por motivos ridículos), enquanto dizem publicamente que é para a defesa da segurança do trânsito. Da forma como as coisas estão, as autoescolas não se distanciam de uma máfia que, junto do seu grande cúmplice Estado — para ameaçar prisão de quem dirigir sem ter feito aulas, ainda que passe nos exames —, obriga-nos a investir tempo e salários mínimos, junto de humilhações por cobrarem coreografias e teatros, para nos dar o “direito de dirigir”. E o dinheiro praticamente obrigado a ser gasto para tirar a CNH poderia ir para diversos ramos da economia, até poderia se tornar impostos públicos, mas é perdido para os bolsos de quem coloca videoaula remota em sala presencial, enquanto obriga presença por Lei.
Assim, da forma como a legislação está, creio que a segurança pública é mero discurso “batista”, escondendo uma série de privilégios “contrabandistas” às autoescolas.
*Rafael Alvim é estudante de Graduação em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro e de Bacharelado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília