No balanço do recesso do mês de julho, ao menos quatro eventos convidam à reflexão dos que acompanham o estado da cidadania no Brasil: os resultados da pesquisa Barômetro da Corrupção, a nova temporada da série inglesa “Downton Abbey”, o filme ainda em cartaz sobre Hannah Arendt e uma crítica sobre a cobertura da mídia à visita do Papa.
Após as manifestações de junho, as pesquisas de opinião que detectam a queda de credibilidade os políticos tupiniquins não apresentam novidade para os cidadãos atuantes, que fiscalizam os governantes, discutem novas pautas de políticas públicas e procuram mobilizar outros cidadãos a fazer o mesmo.
A pesquisa do Barômetro da Corrupção, divulgado pela Transparência Internacional, revela um dado animador: subiu o percentual de cidadãos que acredita poder fazer alguma coisa contra a corrupção: de 77% em 2010 para 81% em 2012.
Já com a série televisiva Downton Abbey, transmitida no Brasil pela “GNT”, e que teve em julho sua terceira temporada lançada em DVD, temos uma ótima oportunidade de refletir sobre a questão da moralidade pública na vida política nacional. A série conta a saga de uma família aristocrática inglesa desde o final do século 19, passando pela Primeira Guerra Mundial, e os esforços para defender seus valores num mundo abalado por conflitos.
Mas o forte da série não é a luta pela sobrevivência de uma classe social enfraquecida contra outra em ascensão. O que conta são as relações intra-classes, e como os preconceitos, ambições e o mal intrínseco ao homem, pela busca de poder, podem ser vistos tanto nas classes abastadas como nos andares mais baixos da pirâmide social.
Ou seja, os vícios não são privativos da aristocracia, nem as virtudes cativas das classes emergentes, média ou proletária. Vícios e virtudes são humanos! Num mundo em rápida mudança, assim como o nosso, hoje, é interessante perceber como a série foca os verdadeiros conflitos morais que fundam o próprio sentido da vida política.
Quanto ao filme Hannah Arendt, é outra excelente oportunidade de reflexão sobre o momento político nacional. Arendt, filósofa alemã de origem judaica, uma das mais importantes pensadoras do século 20, foi testemunha ocular das atrocidades patrocinadas pelo regime nazista durante os anos 30 e 40.
Sua obra mais importante, “As origens do totalitarismo”, é usada até hoje para o estudo das motivações e dos processos que levam à distorção daquilo que ela acreditava ser o maior bem do indivíduo: sua liberdade de escolha e a aceitação das responsabilidades dela decorrentes.
Quando em 1961 teve início o julgamento de Adolf Eichmann, um carrasco nazista, em Israel, Hannah, como repórter da revista “The New Yorker”, relatou como sendo sinceras as declarações de inocência de Eichmann acerca dos crimes que lhe imputavam.
Ele dizia que estava apenas cumprindo ordens superiores, o que não lhe conferia culpa alguma.
Os cinco artigos escandalizaram a opinião pública pela visão dela de que muitos dos que praticaram crimes de guerra não eram monstros: tinham vidas comuns e não viam seus atos como um crime em si. Eram só parte de um processo maior.
Arendt desenvolveu durante o julgamento o conceito de “banalidade do mal”, base de seu pensamento sobre sistemas totalitaristas, nos quais não há espaço para contestação, sufocada pelo ataque à pluralidade de ideias que nos torna cidadãos, senhores de nosso próprio destino. Pois o Estado não pode ser forte demais a ponto de não permitir escolhas individuais e por elas respondermos civil e criminalmente, como adultos conscientes das consequências de nossos atos. Para a filósofa, a recuperação da cidadania no mundo moderno depende do resgate da moralidade pública, sempre acima da questão legal.
Quanto à cobertura da visita do Papa Francisco ao Brasil, visto como “o papa dos pobres” pelo show da mídia de massa – mas de rasa capacidade de interpretação – vale a pena o comentário do professor e filósofo cristão Nivaldo Cordeiro.
Como todos sabem, o pontífice é oriundo da ordem dos jesuítas, mas franciscano de coração. Por isso, assim que foi entronizado, vem recusando sistematicamente diversos símbolos da ostentação papal. A cruz em seu peito é de metal, o trono talhado em ouro foi trocado por uma cadeira de madeira, os sapatos vermelhos de grife agora são calçados
pretos comuns e por aí vai.
Mas cabe aqui uma reflexão mais profunda sobre as preferências do Papa, na medida em que podem ser interpretadas erroneamente como um incentivo à chamada “opção preferencial pelos pobres”. Ou, simplesmente, “pobrismo”, como observa o professor Cordeiro em vídeo divulgado pela internet.
Ele diz que é preciso cuidado para não confundir o incentivo à busca por melhores condições de vida com um possível tratamento preferencial da Santa Igreja pelos mais pobres. E alerta: “a Igreja não é dos pobres. Ela é de todos. Ou seja,o princípio que norteia a Igreja é o amor ao próximo, e não a sua condição social”.
Análise mais do que correta, sobretudo num país de conservadores, como apurou pesquisa recente do Datafolha sobre a nossa sociedade: diferentemente do que se diz por aí, 58% dos brasileiros acreditam que a motivação dos crimes tem origem na maldade das pessoas, e só 39% acreditam que os atos são originados na desigualdade social.
É óbvio. Na pobreza ou na riqueza, sempre existe a possibilidade de escolher ou recusar uma vida de crimes. É uma questão de cidadãos adultos e responsáveis por sua livre conduta.
Assim, é um bom momento para refletirmos sobre os valores da cidadania, que estão bem acima de qualquer condição social ou luta de classes.
Fonte: Diário do Comércio, 07/08/2013
No Comment! Be the first one.