Neste momento de desencanto, com as entranhas da política expostas pela Operação Lava Jato, Brasília é vista como um universo à parte, regido por leis peculiares, habitado por seres de outra espécie, em quem ninguém confia mais. “Ninguém me representa”, refrão consagrado nos protestos de junho de 2013, traduz mais que nunca o sentimento da nação. É possível debelar a infecção que se alastra por todas as instâncias de poder? Dá para consertar a política brasileira? A resposta-padrão costuma ser sempre a mesma, resumida a duas palavras: reforma política. Todo governo promete, nenhum faz. A cada crise, as palavras mágicas são de novo invocadas, como se tivessem o condão de extinguir os problemas. Curioso que houve desde 1988 pelo menos 14 mudanças na legislação política e eleitoral – mas todos continuam a proclamar a necessidade de uma grande reforma capaz de curar todos os males. “Talvez o resultado mais negativo desse interminável debate sobre a reforma política no Brasil tenha sido o aumento da expectativa em relação a seus resultados”, escreve o cientista político Jairo Nicolau no recém-lançado “Representantes de quem?”. “Minhas expectativas são bem mais modestas.”
Nicolau, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um dos maiores conhecedores das minúcias e mazelas de nossa legislação eleitoral. É chamado a cada nova rodada de debates sobre o assunto que acomete de tempos em tempos planície e planalto. Em menos de 180 páginas, ele consegue uma façanha: resume de modo didático e acessível a complexidade e as deficiências de nosso sistema político. Também propõe um roteiro com mudanças simples que, sem ter pretensão a ser uma panaceia, tornariam nosso sistema político ao menos mais fiel aos anseios da sociedade e, portanto, mais eficaz.
Seu foco principal são as eleições para o Legislativo, em especial para a Câmara, onde estão as maiores distorções. Nicolau organiza a explicação em torno das principais dúvidas que afligem o eleitor. Por que alguns deputados são eleitos, enquanto candidatos com mais votos ficam de fora? Por que o voto num candidato liberal pode ajudar a eleger uma deputada comunista – e vice-versa? Que importa mais na escolha dos deputados: partido, religião, origem geográfica, personalidade ou ideologia? Eleitores votam nos mesmos partidos para deputado e presidente? Por que nosso Legislativo é o mais fragmentado do mundo? Por que, se já temos 35 partidos (28 representados na Câmara), esse número não para de crescer? Por que tantos deputados mudam de partido? Por que o voto de um eleitor de Roraima vale nove vezes o de um paulista? Sempre foi assim ao longo da história? Quais foram todas as propostas de mudança na lei eleitoral – voto distrital, distrital misto, distritão, lista fechada – e por que nenhuma delas deu certo? E, finalmente, o que é possível fazer, de modo prático, para corrigir os absurdos?
As propostas de Nicolau para a reforma política têm uma virtude rara: são pouco ambiciosas. Em vez de propor mudar tudo – sabendo que, no fundo, propostas radicais são divisivas e só contribuem para não mudar nada –, ele se atém a algumas poucas ideias, em torno das quais acredita ser possível construir consenso: 1) extinção das coligações nas eleições para deputado (são elas que põem no mesmo balaio candidatos com programas ideológicos antagônicos e provocam as distorções mais gritantes); 2) adoção do patamar mínimo (ou cláusula de barreira) de 1,5% dos votos, em todo o país, para que um partido tenha direito a assento na Câmara, acesso a recursos do Fundo Partidário e horário eleitoral gratuito; 3) extinção, como consequência disso, do patamar mínimo adotado nos estados, conhecido como “quociente eleitoral” (equivalente ao total de votos válidos divididos pelo número de cadeiras do estado na Câmara, ele prejudica os partidos menos votados); 4) manutenção, na lei, da regra atual para registro de novos partidos e da punição, com a perda do mandato, a políticos que trocarem de partido depois de eleitos; 5) correção do tamanho das bancadas da Câmara após cada censo demográfico.
Nicolau tenta fugir das controvérsias em suas propostas. Prefere deixar o financiamento de campanha como está – com a proibição a contribuições corporativas. Na redistribuição das cadeiras, adotou uma postura conservadora: manter os patamares mínimo (oito) e máximo (70), para permitir que bancadas sub-representadas, como Pará, Amazonas ou Rio Grande do Norte, cresçam sem abrir margem a reivindicações da bancada paulista, única afetada pelo limite máximo. Mesmo assim, é provável que essa medida continue a provocar controvérsia. Para as demais, não há contra-argumento sólido. O Congresso resgataria um pouco de sua credibilidade perdida se as aprovasse de imediato. Demorou.
Fonte: “Época”, 19 de fevereiro de 2017.
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